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terça-feira, 27 de abril de 2021

Machado de Assis: 'A Cristã-nova' (Parte I: Cantos I e II)

 A CRISTÃ-NOVA


I  "Olhos fitos no céu, sentado à porta,  O velho pai estava. Um luar frouxo  Vinha beijar-lhe a veneranda barba  Alva e longa, que o peito lhe cobria,  Como a névoa na encosta da montanha  Ao destoucar da aurora. Alta ia a noite,  E silenciosa: a praia era deserta,  Ouvia-se o bater pausado e longo  Da sonolenta vaga, — único e triste  Som que a mudez quebrava à natureza.    II  Assim talvez nas solidões sombrias  Da velha Palestina  Um profeta no espírito volvera  As desgraças da pátria. Quão remota  Aquela de seus pais sagrada terra,  Quão diferente desta em que há vivido  Os seus dias melhores! Vago e doce,  Este luar não alumia os serros  Estéreis, nem as últimas ruínas,  Nem as ermas planícies, nem aquele  Morno silêncio da região que fora  E que a história de todo amortalhara.  Ó torrentes antigas! águas santas  De Cedron! Já talvez o sol que passa,  E vê nascer e vê morrer as flores,  Todas no leito vos secou, enquanto  Estas murmuram plácidas e cheias,  E vão contando às deleitosas praias  Esperanças futuras. Longo e longo  O devolver dos séculos  Será, primeiro que a memória do homem  Teça a mortalha fria  Da região que inda tinge o albor da aurora..."    Machado de Assis, in 'Americanas'

"...essa mesma foi levada
cativa para uma terra estranha.

NAUM, cap. III, v. 10

 

PARTE I

 

I

"Olhos fitos no céu, sentado à porta,

O velho pai estava. Um luar frouxo

Vinha beijar-lhe a veneranda barba

Alva e longa, que o peito lhe cobria,

Como a névoa na encosta da montanha

Ao destoucar da aurora. Alta ia a noite,

E silenciosa: a praia era deserta,

Ouvia-se o bater pausado e longo

Da sonolenta vaga, — único e triste

Som que a mudez quebrava à natureza.


II

Assim talvez nas solidões sombrias

Da velha Palestina

Um profeta no espírito volvera

As desgraças da pátria. Quão remota

Aquela de seus pais sagrada terra,

Quão diferente desta em que há vivido

Os seus dias melhores! Vago e doce,

Este luar não alumia os serros

Estéreis, nem as últimas ruínas,

Nem as ermas planícies, nem aquele

Morno silêncio da região que fora

E que a história de todo amortalhara.

Ó torrentes antigas! águas santas

De Cedron! Já talvez o sol que passa,

E vê nascer e vê morrer as flores,

Todas no leito vos secou, enquanto

Estas murmuram plácidas e cheias,

E vão contando às deleitosas praias

Esperanças futuras. Longo e longo

O devolver dos séculos

Será, primeiro que a memória do homem

Teça a mortalha fria

Da região que inda tinge o albor da aurora..."


Machado de Assis, in 'Americanas'


Texto-fonte:

Obra Completa, Machado de Assis, vol. II,

Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.

Publicado originalmente no Rio de Janeiro, por B.-L. Garnier, em 1875.

sábado, 17 de abril de 2021

Machado de Assis: 'Flor da Mocidade'

"Eu conheço a mais bela flor;  És tu, rosa da mocidade,  Nascida, aberta para o amor.  Eu conheço a mais bela flor.  Tem do céu a serena cor,  E o perfume da virgindade.  Eu conheço a mais bela flor,  És tu, rosa da mocidade.    Vive às vezes na solidão,  Como filha da brisa agreste.  Teme acaso indiscreta mão;  Vive às vezes na solidão.  Poupa a raiva do furacão  Suas folhas de azul-celeste.  Vive às vezes na solidão,  Como filha da brisa agreste.    Colhe-se antes que venha o mal,  Colhe-se antes que chegue o inverno;  Que a flor morta já nada vale.  Colhe-se antes que venha o mal.  Quando a terra é mais jovial  Todo o bem nos parece eterno.  Colhe-se antes que venha o mal,  Colhe-se antes que chegue o inverno." - Machado de Assis: 'Flor da Mocidade', em 'Falenas' (1870)
Poesia de Machado de Assis - Imagem: SULPOST


"Eu conheço a mais bela flor;

És tu, rosa da mocidade,

Nascida, aberta para o amor.

Eu conheço a mais bela flor.

Tem do céu a serena cor,

E o perfume da virgindade.

Eu conheço a mais bela flor,

És tu, rosa da mocidade.


Vive às vezes na solidão,

Como filha da brisa agreste.

Teme acaso indiscreta mão;

Vive às vezes na solidão.

Poupa a raiva do furacão

Suas folhas de azul-celeste.

Vive às vezes na solidão,

Como filha da brisa agreste.


Colhe-se antes que venha o mal,

Colhe-se antes que chegue o inverno;

Que a flor morta já nada vale.

Colhe-se antes que venha o mal.

Quando a terra é mais jovial

Todo o bem nos parece eterno.

Colhe-se antes que venha o mal,

Colhe-se antes que chegue o inverno."


Machado de Assis, em 'Falenas' (1870)


domingo, 11 de abril de 2021

Machado de Assis: 'Musa Consolatrix'

MUSA CONSOLATRIX    "Que a mão do tempo e o hálito dos homens Murchem a flor das ilusões da vida,  Musa consoladora,  É no teu seio amigo e sossegado Que o poeta respira o suave sono.  Não há, não há contigo,  Nem dor aguda, nem sombrios ermos; Da tua voz os namorados cantos  Enchem, povoam tudo  De íntima paz, de vida e de conforto.  Ante esta voz que as dores adormece,  E muda o agudo espinho em flor cheirosa, Que vales tu, desilusão dos homens?  Tu que podes, ó tempo?  A alma triste do poeta sobrenada  À enchente das angústias,  E, afrontando o rugido da tormenta, Passa cantando, alcíone divina.  Musa consoladora,  Quando da minha fronte de mancebo A última ilusão cair, bem como  Folha amarela e seca  Que ao chão atira a viração do outono,  Ah! no teu seio amigo  Acolhe-me, — e haverá minha alma aflita, Em vez de algumas ilusões que teve,  A paz, o último bem, último e puro!"    Machado de Assis
IMAGEM: SULPOST

MUSA CONSOLATRIX


"Que a mão do tempo e o hálito dos homens

Murchem a flor das ilusões da vida,

    Musa consoladora,

É no teu seio amigo e sossegado

Que o poeta respira o suave sono.


    Não há, não há contigo,

Nem dor aguda, nem sombrios ermos;

Da tua voz os namorados cantos

    Enchem, povoam tudo

De íntima paz, de vida e de conforto.


Ante esta voz que as dores adormece,

E muda o agudo espinho em flor cheirosa,

Que vales tu, desilusão dos homens?

    Tu que podes, ó tempo?

A alma triste do poeta sobrenada

    À enchente das angústias,

E, afrontando o rugido da tormenta,

Passa cantando, alcíone divina.

    Musa consoladora,

Quando da minha fronte de mancebo

A última ilusão cair, bem como

    Folha amarela e seca

Que ao chão atira a viração do outono,

    Ah! no teu seio amigo

Acolhe-me, — e haverá minha alma aflita,

Em vez de algumas ilusões que teve,

A paz, o último bem, último e puro!"


Machado de Assis, in "Crisálidas" (1864)


sábado, 3 de abril de 2021

Fernando Pessoa: 'Não sei quantas almas tenho'

"Não sei quantas almas tenho.  Cada momento mudei.  Continuamente me estranho.  Nunca me vi nem acabei.  De tanto ser, só tenho alma.  Quem tem alma não tem calma.  Quem vê é só o que vê,  Quem sente não é quem é,  Atento ao que sou e vejo,  Torno-me eles e não eu.  Cada meu sonho ou desejo  É do que nasce e não meu.  Sou minha própria paisagem;  Assisto à minha passagem,  Diverso, móbil e só,  Não sei sentir-me onde estou.  Por isso, alheio, vou lendo  Como páginas, meu ser.  O que sogue não prevendo,  O que passou a esquecer.  Noto à margem do que li  O que julguei que senti.  Releio e digo: "Fui eu ?"  Deus sabe, porque o escreveu."    Fernando Pessoa
Imagem: SULPOST

 "Não sei quantas almas tenho.

Cada momento mudei.

Continuamente me estranho.

Nunca me vi nem acabei.

De tanto ser, só tenho alma.


Quem tem alma não tem calma.

Quem vê é só o que vê,

Quem sente não é quem é,

Atento ao que sou e vejo,

Torno-me eles e não eu.


Cada meu sonho ou desejo

É do que nasce e não meu.

Sou minha própria paisagem;

Assisto à minha passagem,

Diverso, móbil e só,

Não sei sentir-me onde estou.


Por isso, alheio, vou lendo

Como páginas, meu ser.

O que sogue não prevendo,

O que passou a esquecer.


Noto à margem do que li

O que julguei que senti.

Releio e digo: "Fui eu ?"

Deus sabe, porque o escreveu."


Fernando Pessoa