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segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

Campos de Concentração: "O contágio do mal", por Primo Levi


Nunca a consciência humana foi violentada, ofendida, distorcida como nos campos de concentração: em nenhum lugar, foi mais clamorosa a demonstração de quão tênue é cada consciência, de quão fácil é subvertê-la e submergi-la.

A opinião é do químico e escritor italiano Primo Levi (1919-1987), sobrevivente do campo de concentração de Auschwitz-Birkenau. É autor do livro É isto um homem? (1947), memória dos seus sofrimentos no campo de concentração.

O artigo foi publicado no jornal La Stampa, 21-01-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

"Pensem: há não mais do que 20 anos, e no coração desta civilizada Europa, foi sonhado um sonho demente, o de edificar um império milenar sobre milhões de cadáveres e de escravos. O verbo foi banido para as praças: pouquíssimos se recusaram e foram decepados; todos os outros consentiram, parte deles com desgosto, parte com indiferença, parte com entusiasmo. Não foi somente um sonho: o império, um efêmero império, foi edificado: os cadáveres e os escravos existiram. […]

Mas também houve mais, e pior: houve a demonstração despudorada de como o mal prevalece facilmente. Isso, notem bem, não só na Alemanha, mas onde quer que os alemães tenham posto os pés; em toda a parte, eles o demonstrado, é uma brincadeira de criança encontrar traidores e fazer deles sátrapas, corromper as consciências, criar ou restaurar aquela atmosfera de consenso ambíguo, ou de terror aberto, que era necessária para traduzir em ato os seus desígnios.

Tal foi a dominação alemã na França, na França inimiga de sempre; tal foi na livre e forte Noruega; tal foi na Ucrânia, apesar dos 20 anos de disciplina soviética; e as mesmas coisas aconteceram, conta-se com horror, dentro dos próprios guetos poloneses: até mesmo dentro dos campos de concentração. Foi uma irrupção, uma enxurrada de violência, de fraude e de servidão: nenhuma represa resistiu, salvo as ilhas esporádicas das Resistências europeias.

Nos próprios campos de concentração, eu disse. Não devemos recuar diante da verdade, não devemos indultar à retórica, se realmente queremos nos imunizar. Os campos de concentração foram, além de lugares de tormento e de morte, lugares de perdição.

Nunca a consciência humana foi violentada, ofendida, distorcida como nos campos de concentração: em nenhum lugar, foi mais clamorosa a demonstração a que nos referíamos antes, a prova de quão tênue é cada consciência, de quão fácil é subvertê-la e submergi-la.

Não admira que um filósofo, Jaspers, e um poeta, Thomas Mann, tenham renunciado a explicar o hitlerismo em chave racional e tenha falado dele, literalmente, como "dämonische Mächte", como potências demoníacas.

Nesse plano, adquirem sentido muitos detalhes, desconcertantes, da técnica concentracionária. Humilhar, degradar, reduzir o homem ao nível das suas vísceras. Por isso, a viagem nos vagões selados, propositalmente promíscuos, propositalmente desprovidos de água (não se tratava aqui de razões econômicas). Por isso, a estrela amarela sobre o peito, o corte dos cabelos, também nas mulheres. Por isso a tatuagem, o uniforme desajeitado, os sapatos que fazem tropeçar. Por isso, e de outro modo não se entenderia, a cerimônia típica, predileta, cotidiana, da marcha em passo militar dos homens-trapos diante da orquestra, uma visão grotesca mais do que trágica.

Assistiam-na, além dos chefes, as repartições da Hitlerjugend, rapazes de 14-18 anos, e é evidente quais deviam ser as suas impressões. São esses, portanto, os judeus de que nos falaram, os comunistas, os inimigos do nosso país? Mas eles não são homens, são marionetes, são feras: estão sujos, esfarrapados, não se lavam, não se defendem ao serem agredidos, não se rebelam; não pensam senão em encher a pança. É justo fazê-los trabalhar até a morte, é justo matá-los. É ridículo compará-los a nós, aplicar a eles as nossas leis.

Chegava-se ao mesmo escopo de aviltamento, de degradação por outro caminho. Os funcionários do campo de Auschwitz, mesmo os mais altos, eram prisioneiros: muitos eram judeus. Não se deve acreditar que isso mitigasse as condições do campo: ao contrário. Era uma seleção ao revés: eram escolhidos os mais vis, os mais violentos, os piores, e lhes eram concedidos todo poder, alimentos, vestes, isenção do trabalho, isenção da própria morte em gás, contanto que colaborasse.

Colaboravam: e eis que o comandante Höss pode se livrar de todo remorso, pode levantar a mão e dizer "está limpa": não somos mais sujos do que vocês, os nossos próprios escravos trabalharam conosco. Releiam a terrível página do diário de Höss em que se fala do Sonderkommando, da equipe designada para as câmaras de gás e para o crematório, e vocês entenderão o que é o contágio do mal."
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Reprodução de: "O contágio do mal. Artigo de Primo Levi" (Instituto Unisinos)
Imagem: "The Last Goodbye", pintura de Edith Birkin, sobrevivente do Holocausto

sábado, 18 de janeiro de 2020

Paulo Coelho: "A Lenda Pessoal"

"...A lenda pessoal é aquilo que você sempre desejou fazer.

Todas as pessoas, no começo da juventude, sabem qual é sua lenda pessoal.

Nesta altura da vida, tudo é claro, tudo é possível, e não temos medo de sonhar e de desejar tudo aquilo que gostaríamos de fazer.

Entretanto, à medida em que o tempo vai passando, uma misteriosa força começa a tentar provar que é impossível realizar a Lenda Pessoal.

Esta força que parece ruim, na verdade está ensinando a você como realizar sua Lenda Pessoal.

Está preparando seu espírito e sua vontade, porque existe uma grande verdade neste planeta: seja você quem for, quando quer com vontade alguma coisa, é porque este desejo nasceu na alma do Universo.

É sua missão na Terra."

Paulo Coelho, in "O Alquimista" (1988)
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Imagem: Foto de Paulo Coelho, em 2007, por Paul Macleod (CC BY 3.0)

domingo, 12 de janeiro de 2020

Osho: "O Rio se torna Mar"

"Dizem que antes de um rio entrar no mar, 
ele treme de medo. 

Olha para trás, 
para toda jornada que percorreu, 
para os cumes, as montanhas,  
para o longo caminho sinuoso que trilhou
através de florestas e povoados 
e vê  à  sua frente um oceano 
tão vasto, que entrar nele nada mais é
do que desaparecer para sempre.

Mas não há outra maneira. 

O rio não pode voltar. 

Ninguém pode voltar.

Voltar é  impossível na existência. 

O rio precisa aceitar sua natureza e entrar no oceano.  

Somente ao entrar no oceano o medo irá se diluir,
porque apenas então o rio saberá
que não se trata de desaparecer no oceano,
mas de se tornar o oceano."
Osho, citando Khalil Gibran

sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

Augusto Cury: "Desejo que você"

Crédito da foto: Ronald Sanson Stresser, Jr

"Não tenha medo da vida, tenha medo de não vivê-la. Não há céu sem tempestades, nem caminhos sem acidentes. Só é digno do pódio quem usa as derrotas para alcançá-lo. Só é digno da sabedoria quem usa as lágrimas para irrigá-la. Os frágeis usam a força; os fortes, a inteligência.

Seja um sonhador, mas una seus sonhos com disciplina, pois sonhos sem disciplina produzem pessoas frustradas. Seja um debatedor de ideias. Lute pelo que você ama."

terça-feira, 7 de janeiro de 2020

Dalai Lama: "Como alcançar a felicidade?"



"Para começarmos, podemos dividir todo tipo de felicidade e sofrimento em duas categorias principais: mental e física. Das duas, é a mente que exerce a maior influência em muitos de nós. 

A menos que estejamos gravemente doentes, ou privados de nossas necessidades básicas, a condição física representa um papel secundário na vida. Se o corpo está satisfeito, praticamente o ignoramos.

A mente, entretanto, registra cada evento, por mais pequeno que seja. Por isso, deveríamos devotar nossos mais sérios esforços à produção da paz mental. 

A partir de minha própria limitada experiência, descobri que o mais alto grau de tranqüilidade interior vem do desenvolvimento do amor e da compaixão.

Quanto mais nos ocuparmos com a felicidade alheia, maior se tornará nossa sensação de bem-estar.

O cultivo de sentimentos amorosos, calorosos e próximos para com os outros automaticamente descansa a mente. Isto ajuda a remover quaisquer temores ou inseguranças que possamos ter e, nos dá força para enfrentarmos quaisquer obstáculos que encontramos. É a principal fonte de sucesso na vida.

Enquanto vivemos neste mundo estamos destinados a encontrar problemas. Se, nessas ocasiões, perdemos a esperança e nos desencorajamos, diminuímos nossa habilidade de encarar as dificuldades.

Se, por outro lado, nos lembramos que não se trata apenas de nós, mas, que todos têm de passar por sofrimento, esta perspectiva mais realista aumentará nossa capacidade e determinação para sobrepujarmos os problemas.

Na verdade, com essa atitude, cada novo obstáculo pode ser encarado como sendo mais uma valiosa oportunidade de aprimorar nossa mente!

Desse modo, podemos gradualmente nos esforçar para nos tornarmos mais compassivos, ou seja, podemos desenvolver tanto a genuína empatia pelo sofrimento dos outros, quanto a vontade de ajudar a remover sua dor. Como resultado, crescerão nossas próprias serenidade e força interior."

sábado, 4 de janeiro de 2020

Kafka: "Medo de Casar"

Resumo de todos os argumentos a favor e contra o meu casamento...


"Resumo de todos os argumentos a favor e contra o meu casamento:

1. Incapacidade de suportar a vida sozinho, o que não implica incapacidade de viver, pelo contrário; até é improvável que eu saiba viver com alguém, mas sozinho não consigo aguentar o assalto da minha própria vida, as exigências da minha pessoa, os ataques do tempo e da idade, a vaga pressão do desejo de escrever, a insônia  a proximidade da loucura — não consigo aguentar isto só. É claro que junto 'talvez' a tudo isto. A relação com F. vai dar à minha existência mais força para resistir.

2. Tudo me faz imediatamente pensar. Todas as piadas no jornal humorístico, o que me lembro de Flaubert e de Grillparzer, as camisas de noite nas camas dos meus pais, ali postas para a noite, o casamento de Max. Ontem a minha irmã disse: 'Todas as pessoas casadas (as pessoas que conhecemos) são felizes. Não percebo', esta afirmação também me fez pensar, fiquei outra vez com medo.

3. Tenho de estar só muito tempo. O que consegui fazer foi apenas o resultado de estar só.

4. Odeio tudo o que não se relacione com a literatura, as conversas aborrecem-me (mesmo quando são sobre literatura), fazer visitas aborrece-me, as mágoas e as alegrias das pessoas da minha família aborrecem-me até ao fundo da alma. As conversas, a importância, a seriedade, a verdade de tudo o que penso.

5. O medo da relação, o passar para o outro. Então nunca mais fico só.

6. Antigamente a pessoa que sou na companhia das minhas irmãs era diferente da pessoa que sou na companhia de outras pessoas. Sem medo, poderoso, surpreendente, sensível como só sou quando escrevo. Se pela mediação da minha mulher eu pudesse ser assim em frente de toda a gente! Mas não seria então à custa do que escrevo? Isso não, isso não!

7. Só, eu talvez pudesse um dia desistir do meu emprego. Casado, isso nunca seria possível."

Franz Kafka, em "Diário" (21 Jul 1913)
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Imagem: Pixabay (CC)