Quando o clamor religioso se mistura ao ódio político: como uma mentira sobre a COP30 transforma medo em política e desvia a atenção das vidas que realmente importam
Belém do Pará se prepara para receber, em 2025, a COP30 — a conferência global que deveria simbolizar união, ciência e responsabilidade climática. Mas, enquanto a cidade organiza sua estrutura, outro movimento — estrondoso nas redes e silencioso nas intenções — tenta reescrever a narrativa: grupos bolsonaristas difundem a ideia de que o evento teria exibido uma “estátua satânica”.
Entre a fé e a manipulação: quando o medo vira ferramenta política
Conversei com pesquisadores de comunicação, religião e movimentos sociais que apontam uma constatação clara: o medo é o combustível mais eficiente do radicalismo. E quando acionado, serve a qualquer agenda — inclusive àquela que pretende desacreditar a ciência, atacar instituições e sabotar debates ambientais.
“Não existe, até o momento, registro de qualquer obra com esse teor nas preparações oficiais da COP30. O que existe é a construção de uma ficção simbólica pensada para viralizar. Quanto mais grotesca a imagem, mais ela mexe com o emocional. E quanto mais emoção, mais engajamento — não importa se é falso.”
O fenômeno não nasce ao acaso. Ele se insere numa estrutura onde o mundo é dividido entre “nós, os puros” e “eles, os corruptos e satânicos”. Nessa lógica, qualquer evento global vira palco de batalha espiritual — e a pauta socioambiental vira pano de fundo para acender ódios, não consciências.
A ponte perigosa entre extremismo político e extremismo religioso
O Brasil convive há anos com um bloco que entrelaça fé e radicalização política. Esse entrelaçamento não apenas instrumentaliza símbolos — ele reorganiza vínculos, reescreve inimigos e legitima ações que antes seriam inaceitáveis.
Quando esse discurso encontra terreno fértil, suas consequências extrapolam fronteiras. A destruição da Palestina por Israel — intensificada por narrativas que transformam adversários em inimigos existenciais — é exemplo de como discursos que desumanizam o outro podem autorizar a violência. A desinformação que tenta satanizar a COP30 não tem a mesma escala geopolítica, mas nasce da mesma lógica: fabricar pânicos morais para impedir diálogos racionais.
De onde nasce o boato e para onde ele aponta
A transcrição que circula nas redes bolsonaristas diz que “a estátua satânica exibida na COP30 se tornou o principal foco de debate nas redes brasileiras...”. A resposta que a reportagem apurou é direta: não houve estátua. Não houve exposição. Não houve símbolo satânico.
O que houve foi um ecossistema organizado de desinformação que investe em criar narrativas falsas com três objetivos principais:
- Descredibilizar instituições internacionais, especialmente as ligadas ao meio ambiente;
- Criar choque moral para gerar compartilhamentos impulsivos;
- Agitar a base radicalizada, mantendo-a em constante estado de mobilização emocional.
Belém, COP30 e o que realmente importa
Enquanto a farsa da “estátua demoníaca” corre pelas redes, a vida continua no Pará. Ribeirinhos, lideranças indígenas, pesquisadores e trabalhadores que dependem da floresta aguardam a COP30 com esperança — não por simbolismos ocultos, mas por ações concretas.
A COP é uma oportunidade rara: para colocar o Norte do Brasil no centro do mundo, para ouvir povos invisibilizados, para desenhar políticas climáticas com sotaque amazônico. Narrativas conspiratórias importam porque desviam foco do que está em jogo — vidas humanas, territórios e um planeta que pede socorro.
O Brasil diante de sua encruzilhada: ciência ou superstição política?
A pergunta que ecoa nas redes — “o que motivou o símbolo satânico na COP30?” — fala mais sobre quem pergunta do que sobre o próprio evento. O país tem uma escolha clara: ou alimentamos monstros de fantasia que fortalecem extremismos, ou encaramos os monstros reais: desmatamento, aquecimento, fome hídrica e desinformação organizada.
A COP30 chegará, com ou sem boatos. A questão é se chegaremos preparados como nação — ou se permitiremos que medos fabricados continuem guiando decisões que afetam milhões de vidas.


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