Caravanas de todo o país e delegações da diáspora reúnem vozes que exigem reparação material, proteção e uma vida digna — a presença nas ruas pede que o Estado transforme reconhecimento em política concreta
| Mulheres embarcaram ontem (24) em ônibus no Rio de Janeiro rumo à Brasília, para participar da Marcha das Mulheres Negras - Tomaz Silva/Agência Brasil |
Caravanas chegaram cedo a Brasília nesta terça-feira (25). Ao som dos berimbaus e das rodas de capoeira, milhares — e, segundo as organizadoras, até centenas de milhares — de mulheres negras ocuparam a Esplanada dos Ministérios em defesa de uma pauta que atravessa gerações: reparação histórica e o direito ao bem-viver. A mobilização, articulada pelo Comitê Nacional da Marcha das Mulheres Negras, faz parte da Semana por Reparação e Bem-Viver (20 a 26 de novembro) e reúne atividades políticas, culturais e de memória.
Uma marcha que conjuga dor e potência
Dez anos depois da primeira grande marcha de 2015, que levou mais de 100 mil mulheres às ruas de Brasília, a nova edição volta a transformar a Esplanada em território de história e reivindicação. O mote é claro: não basta reconhecer o passado; é preciso materializar reparações que revertam os indicadores de pobreza, mortalidade materna, falta de moradia e exclusão econômica que ainda marcam as vidas das mulheres negras.
Programação do dia e presença institucional
A concentração começou às 9h no Museu da República, com roda de capoeira e cortejo de berimbaus; às 11h foi a saída pela Esplanada dos Ministérios; e à tarde, a cultura toma o gramado com artistas engajadas — entre elas Larissa Luz, Luanna Hansen, Ebony, Prethaís, Célia Sampaio e Núbia, que encerram o dia com shows que interligam resistência e potência criativa. Paralelamente, o Congresso realizou sessão solene em homenagem à marcha.
Reivindicações concretas: o Manifesto Econômico
A marcha apresentou um Manifesto Econômico dividido em sete eixos, que propõe medidas concretas — entre elas a criação de um fundo nacional de reparação, taxação de grandes fortunas, redução de juros, blindagem do orçamento social, reformas agrária e urbana, e linhas de crédito específicas para empreendedoras negras. Essas propostas buscam transformar a reparação em mecanismo público de redistribuição e desenvolvimento.
Estimativas e alcance: 1 milhão ou 300 mil?
Há diferença nas estimativas de público: as organizadoras e o Comitê Nacional falam em uma expectativa que chega a 1 milhão de participantes; veículos e análises internacionais falam em algo mais conservador — cerca de 300 mil — o que evidencia tanto a amplitude simbólica do chamado quanto as dificuldades de medição em grandes atos. O importante, para as organizadoras, é o sinal político: ocupar Brasília para impor à agenda pública demandas de reparação.
Diáspora e articulação regional
A mobilização é também transnacional: lideranças da diáspora, de países da América Latina e do continente africano viajaram para Brasília para somar forças. Essa presença reforça que a reparação e a luta contra o racismo colonial não são pautas isoladas, mas temas de uma agenda global que conecta memórias e territórios.
Vozes: memória que impulsiona
Entre as presenças simbólicas está Melina de Lima, neta da antropóloga Lélia González, cuja obra sobre ameafricanidade e “pretuguês” alimenta o pensamento do feminismo negro no país. A memória de Lélia aparece como vetor intelectual e ancestral que conecta as demandas atuais a uma longa genealogia de resistência.
Saúde, religião e fragilidades cotidianas
Movimentos de mães, terreiros e organizações da saúde denunciam que o racismo se manifesta também no cuidado: violência policial contra comunidades, ataques a terreiros, e a ausência de políticas públicas de proteção que poderiam reduzir mortes evitáveis entre mulheres negras. Instituições científicas e de saúde que declararam apoio reforçam que a reparação é também uma questão de saúde pública.
Desafio político: transformar marcha em política
As organizadoras sabem que ocupar a Esplanada é apenas o começo. A agenda exige que o poder público incorpore propostas em políticas públicas e orçamento. No Congresso tramita a PEC 27/24 — que prevê criação de um fundo nacional de reparação com aporte inicial estimado — e há expectativa de pressão por medidas legislativas que tornem efetivas as propostas do Manifesto.
(Nota: os detalhes legislativos e o texto final da PEC devem ser consultados no portal do Congresso e em apurações específicas.)
Ruptura e cuidado — um futuro que se negocia hoje
Ao ocupar Brasília, as mulheres negras colocam na praça pública uma equação simples e dolorosa: reconhecer não basta; é necessário reparar. Mas também afirmam que a reparação tem rosto, voz e corpos — meninas e idosas, trans e cis, religiosas de terreiros e jovens militantes — que juntas demandam que o Estado e a sociedade passem do gesto simbólico ao financiamento, à reforma e à proteção. O bem-viver, no fim, é a medida de qualquer justiça que se pretenda duradoura.

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