Oceanos em agonia: por que a saúde do mar é a nossa própria sobrevivência?
Por Ronald Stresser, da redaçãoA Grande Mancha de Lixo do Pacífico - Ocean Cleanup/Reprodução |
Sob a superfície azul que cobre mais de 70% da Terra, existe um ecossistema pulsante que nos sustenta – ainda que a maioria de nós raramente pense nisso. Os oceanos são muito mais que paisagens bonitas em cartões-postais. São eles que amansam o calor dos verões cada vez mais extremos, que produzem o oxigênio que nos mantém vivos, que abrigam incontáveis formas de vida – das menores criaturas planctônicas aos grandes mamíferos marinhos – e que alimentam, com peixe fresco e sustento diário, milhões de famílias espalhadas pelo mundo. Eles nos protegem. E agora, estão pedindo socorro.
O problema é que esse grito vem do fundo e soa abafado. Um colapso silencioso se instala onde a maioria não enxerga. O mar, antes refúgio, está ficando sufocado: plástico por toda parte, temperatura em alta, desequilíbrio em cadeia. E, ainda que tudo isso aconteça longe dos olhos, o impacto chega até nós – no clima, no alimento, na economia, na saúde.
A cena que se repete em diferentes partes do mundo parece saída de um filme distópico, mas é real e cotidiana. Em pleno Oceano Pacífico, um arquipélago de lixo vaga à deriva, carregando resquícios da vida moderna: escovas de dente esquecidas, redes de pesca rasgadas, brinquedos sem dono, garrafas que um dia saciaram nossa sede e hoje boiam como testemunhas silenciosas do descaso.
A Grande Mancha de Lixo do Pacífico não é só um acúmulo de resíduos – é uma ferida aberta no maior oceano do planeta. Um tumor flutuante que cresce devagar, alimentado por tudo aquilo que descartamos sem pensar duas vezes. Ali, entre as ondas, o que descartamos sem pensar – por pressa, por conveniência, por hábito – ganha outra forma. Vira armadilha. Vira ameaça. Redes fantasma aprisionam tartarugas, fragmentos de plástico se confundem com alimento, golfinhos nadam entre detritos como se fosse normal. A vida marinha resiste como pode, sufocada por um mundo que não aprendeu a cuidar do que é essencial. Segundo a União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), mais de 14 milhões de toneladas de plástico acabam nos oceanos todos os anos. E, enquanto esse ciclo não é quebrado, o mar segue se enchendo – não de vida, mas de rastros do nosso próprio descuido.
Parte desse material é engolida por tartarugas, aves e peixes. Outra parte se desintegra em partículas minúsculas, os microplásticos, que já foram encontrados em águas profundas, em fetos humanos e, sim, no nosso prato de comida.
Limpar ou prevenir?
Diante desse cenário, a ONG The Ocean Cleanup, fundada em 2013, tem ganhado destaque mundial com suas operações de remoção de plástico em alto-mar. Usando sistemas em formato de U e barreiras flutuantes instaladas em mil rios ao redor do mundo, o grupo diz ser capaz de retirar até 90% do plástico flutuante dos oceanos. Desde 2018, já coletou 10 mil toneladas da Grande Mancha, apenas 0,5% do total acumulado. A meta ambiciosa: eliminar toda a mancha em até 10 anos, a um custo de US$ 7,5 bilhões.
“A humanidade tem as ferramentas necessárias para limpar o oceano. A única coisa que falta é quem garantirá que esse trabalho seja feito”, disse Boyan Slat, fundador da organização.
Mas nem todos estão convencidos. ONGs como a OceanCare e a Agência de Investigação Ambiental alertam que focar em limpezas massivas pode ser uma distração cara e paliativa, desviando recursos daquilo que realmente impediria o desastre: parar o fluxo de plástico na origem. Além disso, críticos apontam que os próprios sistemas de coleta geram emissões e podem ferir a vida marinha. E há ainda a desconfiança de que empresas financiadoras da iniciativa, como Coca-Cola e a petrolífera Saudi-Aramco, estejam usando a ação como greenwashing – uma forma de “lavar” sua imagem sem mudar suas práticas poluentes.
O ar-condicionado global em pane
O que está em jogo, porém, vai muito além do plástico visível. Os oceanos vêm atuando como um imenso ar-condicionado da Terra. Desde o século XIX, eles absorveram 90% do calor extra e 30% do CO₂ emitido por humanos. Essa função essencial os aqueceu em 1,5°C e os tornou mais ácidos – um cenário devastador para corais, plânctons e todo o ecossistema marinho.
“De 1999 a 2008, as ondas de calor marinhas eram raras. Desde 2016, passaram a acontecer praticamente todo ano”, alerta a oceanógrafa Regina Rodrigues, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Seu estudo publicado na Nature Communications mostra que o Atlântico Sul, especialmente próximo à costa brasileira, vive sob ameaça tripla: calor, acidificação e perda de clorofila – substância vital para a fotossíntese dos organismos marinhos.
Esses três fatores combinados estão matando corais, reduzindo estoques pesqueiros e afetando diretamente a segurança alimentar de comunidades costeiras. E não para aí: um colapso completo da Amoc, a grande corrente de circulação do Atlântico, pode estar mais próximo do que se pensava. Essa corrente transporta calor do sul para o norte e regula o clima em diversas partes do mundo. Se ela parar, secas, invernos extremos e eventos climáticos descontrolados podem se tornar realidade em questão de décadas – ou anos.
Oceano cada vez mais seco
No sul da África, os impactos já são sentidos em terra firme. Um estudo da Universidade de Bonn, na Alemanha, revelou que a elevação do solo em partes da África do Sul tem relação direta com a perda de água subterrânea, provocada por longas secas. A situação lembra o drama vivido pela Cidade do Cabo entre 2015 e 2019, quando o “dia zero” – o momento em que a água potável acabaria – bateu à porta. E a tendência é que isso se repita em outros lugares, inclusive no Brasil, onde cidades litorâneas dependem do mar tanto para o sustento quanto para o abastecimento de água doce, via ciclo hidrológico.
O que está sendo feito – e o que falta fazer
A luta pela sobrevivência dos oceanos passa por múltiplos caminhos. Há ações locais de contenção de poluentes, avanço tecnológico nas limpezas, pesquisa científica e pressão diplomática por tratados internacionais que limitem a produção de plástico. Também há esperanças depositadas em novas formas de monitoramento por satélite e modelos hidrológicos, capazes de prever impactos antes que eles ocorram.
Mas a mensagem dos cientistas é clara: sem uma redução drástica das emissões de gases de efeito estufa e sem a transformação dos modelos de produção e consumo, todos os esforços serão insuficientes. “Estamos perto do ponto de não retorno”, alerta Regina Rodrigues. “Proteger os oceanos é proteger nosso futuro – e o tempo está se esgotando.”
A escolha é nossa
Entre discursos e debates, o mar segue falando sua linguagem. Está nas manchas que boiam na superfície, nas águas quentes que matam corais, nas secas que revelam o quanto dependemos dele mesmo em terra firme. Os oceanos estão nos dizendo que não há tempo para soluções parciais. E talvez a pergunta mais importante neste momento não seja “quem vai limpar?”, mas sim “quem vai impedir que a sujeira continue vindo?”
Porque quando os oceanos adoecem, todo o planeta adoece com eles.
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