Por Ronald Stresser / Janeiro de 2025
Do Fome Zero ao zero de vergonha na cara: a nova "solução" para a crise alimentar no Brasil
Há momentos em que o jornalismo precisa parar, respirar fundo e se perguntar: estamos realmente avançando? Porque algumas notícias nos atingem como um soco no estômago – não pelo ineditismo, mas pela insistência com que certos problemas se repetem. E nada escancara tanto essa triste realidade quanto a fome.
Se voltarmos no tempo, ao distante 2002, uma promessa reverberava pelo país: erradicar a fome. “Fome Zero” não era apenas um slogan, mas um compromisso moral, um pacto com a dignidade. O Brasil não poderia aceitar que seus filhos dormissem de barriga vazia. Mais de duas décadas depois, a cena se repete. O governo, novamente, declara guerra à fome. Mas como explicar que, em um país que produz alimento suficiente para alimentar todos os seus habitantes, ainda há milhões que passam fome?
A resposta é brutalmente simples: a fome não é uma fatalidade, mas uma escolha política e econômica. O capitalismo não apenas convive com a fome – ele a necessita. A escassez mantém os preços altos, regula os lucros, define quem come e quem assiste, impotente, ao desperdício de toneladas de alimentos.
Agora, a grande solução proposta pela Associação Brasileira de Supermercados (Abras) para combater a inflação dos alimentos não é aumentar a produção, melhorar a distribuição ou investir na segurança alimentar. Não. A proposta é mudar os prazos de validade dos produtos, permitindo que alimentos “fora do prazo” sejam vendidos mais baratos.
O cinismo é tão grande que chega a ser difícil de digerir. Não se trata de doar alimentos para quem precisa. Trata-se de vender comida vencida. Como se a pobreza pudesse ser contornada com restos, com aquilo que, até ontem, seria descartado. Como se o trabalhador faminto devesse agradecer pela oportunidade de consumir o que os ricos já não querem mais.
E essa não é a única ideia brilhante da Abras. Há também a proposta de permitir a venda de medicamentos sem receita nos supermercados – afinal, já que não podemos garantir uma alimentação saudável, que tal facilitar o acesso a remédios para conter as consequências de uma nutrição precária? A fome não é tratada como um problema social, mas como um mercado em potencial.
A ironia é que, ao mesmo tempo em que choram pelo “peso dos impostos”, os grandes supermercados brasileiros registraram um faturamento superior a **R$ 1 trilhão** no último ano. E ainda querem isenção fiscal para “doar” o que já não tem valor de mercado. Querem incentivos para cumprir o mínimo da responsabilidade social.
O problema da fome não é a falta de comida. É a desigualdade na sua distribuição. E, acima de tudo, é a forma como o lucro se sobrepõe à vida. Porque aqueles que defendem essas propostas, aqueles que sugerem vender comida vencida e remédios sem controle, não se alimentam do que vendem ao povo. Suas geladeiras não guardam iogurtes vencidos. Suas mesas não têm pão mofado.
O combate à fome precisa de soluções reais: reforma agrária, subsídios para pequenos produtores, taxação do grande capital, fortalecimento de programas de segurança alimentar. Mas essas medidas não interessam a quem lucra com a miséria.
A fome no Brasil não é um acidente. É um projeto. E, enquanto aceitarmos paliativos que apenas legitimam a desigualdade, continuaremos presos nesse ciclo perverso, onde o prato vazio de muitos sustenta a riqueza de poucos.
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