Eduardo Appio, juiz federal de Curitiba, saiu do gabinete e foi puxar carros de doações em Rio Bom do Iguaçu
Por Ronald Stresser — 10 de novembro de 2025
| Reprodução/Internet |
Quando as sirenes da assistência humanitária soaram pela primeira vez sobre as casas arrancadas pelo vento, ele trocou o terno do tribunal pelo casaco de quem carrega sacos, água e esperança. Na manhã desta segunda-feira, o juiz federal Eduardo Appio — figura que nos últimos dois anos entrou nas páginas pela sua passagem pela 13.ª Vara de Curitiba e pelas controvérsias que acompanham aquela jurisdição — estava entre os voluntários que ajudam a reconstruir Rio Bonito do Iguaçu: abastecendo carros, levando moradores a atendimentos e organizando doações para quem perdeu tudo.
O cenário é o de uma cidade marcada por um tornado devastador: casas reduzidas a estruturas, famílias desalojadas, milhares precisando de água, fraldas, roupas e um lugar para dormir. Em meio à confusão — nas linhas de montagem improvisadas para triagem de doações e nas filas por atendimento — a presença de um magistrado trabalhando ao lado de vizinhos e voluntários foi, para muitos, um sinal de humanidade concreta em tempos de polarização.
Mas a história pessoal de Appio não se resume a esse gesto. Há semanas, o nome do juiz voltou a ocupar as páginas por motivos muito distintos: o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) anunciou afastamento cautelar de suas funções na vara previdenciária enquanto tramita apuração sobre uma ocorrência registrada em Santa Catarina — relacionando-o a um episódio em que constam, em boletim, duas garrafas de champanhe subtraídas de um supermercado. O próprio tribunal e reportagens que cobriram o caso tratam o processo como sigiloso e em investigação. Appio nega a prática de crime e sua defesa afirmou que se manifestará nos autos.
Quem viu Appio ontem nas frentes de trabalho conta que o gesto de oferecer o próprio veículo para transporte de feridos e doações não apaga — e nem pretende apagar — o turbilhão público que o cerca. Pelo contrário: a presença junto aos sobreviventes dá corpo a uma narrativa paralela, que seus apoiadores consolidam como prova de caráter e serviço público. Para esses apoiadores, e para parte da opinião que estudou os desdobramentos da Operação Lava‑Jato e das sucessivas intervenções disciplinares sobre magistrados, o episódio atual é apenas mais um capítulo de um processo maior — o que alguns chamam de “lawfare” e “ativismo judicial” — por meio do qual atores institucionais, políticos e midiáticos teriam convertido a jurisdição em arena de disputas políticas com efeitos permanentes sobre reputações.
Há, na história recente do país, episódios que justificam suspicácia: processos disciplinares, decisões de corregedoria, investigações e intervenções que atravessaram juízes e bateram na legitimidade institucional. Appio, que em 2023 assumiu turmas que herdaram a Lava-Jato e que desde então adotou decisões e posturas que desagradaram a diferentes campos, vive agora essa sobreposição dolorosa — a do servidor público prestando auxílio imediato numa cidade em ruína e do sujeito público diante de investigações que podem suspender sua carreira. A combinação é explosiva politicamente.
Como não dar “furo”: as fontes oficiais e a imprensa que acompanha o caso registram o afastamento, a investigação sigilosa e as negativas da defesa — fatos que precisei checar e anotar antes de narrar o que vi e ouvi em Rio Bonito do Iguaçu. Não é meu papel transformar hipótese em sentença; é meu dever, como jornalista, quarta geração atuando aqui em Curitiba, mostrar os gestos, as evidências públicas e as interpretações concorrentes: de um lado a busca por responsabilização e apuração; do outro a interpretação política de que tais apurações fazem parte de uma máquina capaz de reduzir reputações em tempo recorde.
A convivência entre essas narrativas — a do juiz-voluntário e a do juiz-investigado — põe em relevo um problema maior que atravessa o Brasil contemporâneo. Quando a justiça se expõe à lógica do espetáculo, quando denúncias ganham velocidade nas capas e investigações viram manchetes que circulam sem o sossego dos autos, cria-se um mecanismo que ultrapassa o direito: a construção pública de culpabilidade antes que a apuração seja concluída. É aí que muitos advogam o termo “lawfare”: o uso do aparato jurídico e midiático para efeitos políticos que, independentemente do resultado final, destrói reputações, mina pleitos de confiança pública e transforma processos em instrumentos de dominação simbólica.
A vitória retórica do processo midiático é dupla: por um lado gera adesão imediata de tribunas, redes e grupos — inclusive de atores que se situam no campo lavajatista e que rapidamente reagem, defendendo-se ou atacando; por outro, alimenta um circuito em que a própria vida privada do investigado passa a ser escrutinada e usada como prova de uma narrativa mais ampla. Vê-se, assim, uma espécie de “caça às bruxas” midiática, onde o espetáculo substitui o método, e a polarização serve de combustível para um protofascismo simbólico que deseja, acima de tudo, a destruição do outro como forma de afirmação.
Não é necessário concordar com todas as decisões do juiz Appio, nem fechar os olhos a qualquer prática reprovável que venha a ser comprovada. Mas a cena de um homem que, numa segunda-feira marcante, empurra um carro cheio de donativos para uma cidade que perdeu quase tudo, deveria servir de lembrete: acusar é um poder; depor é uma responsabilidade; destruir reputações sem paciência investigativa é um pecado público. O jornalismo tem a tarefa de narrar — com rigor e humanidade — esses contrassensos.
Terminada a reportagem, sigo com uma reflexão breve: em tempos de ativismo judicial espetacularizado e de polarização acelerada, a ruína reputacional tornou-se, muitas vezes, irreversível. O cálculo político que instrumentaliza processos e que encontra na imprensa amplificadora um parceiro rápido cria feridas que não cicatrizam apenas com decisões judiciais posteriores. Enquanto persistir a lógica de transformar cada procedimento em palanque e cada nome em sentença midiática, continuaremos a assistir cidadãos — servidores, juízes, qualquer pessoa pública — virar protagonista de uma espécie obscura de caça às bruxas. Essa prática não apenas viola procedimentos; corrói a confiança social e, paradoxalmente, abre espaço para discursos que exaltam a força e a punição em vez da justiça com processo e prova. É uma pedra lançada no lago da democracia: as ondas chegam muito longe.

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