Às margens do Rio Paraná, Itaipu continua sendo muito mais que concreto, água e turbinas. Ela é símbolo de soberania, poder energético e um lembrete de que o Brasil e o Paraguai, juntos, construíram a maior hidrelétrica binacional do planeta. Mas agora, no silêncio calculado das salas refrigeradas e dos corredores da diplomacia, um novo capítulo começa a se desenhar: os Estados Unidos estão de olho no excedente energético paraguaio para alimentar data centers de inteligência artificial.

A corrida mundial por energia limpa não é novidade. A Agência Internacional de Energia (IEA) projeta que, até 2030, os data centers vão consumir cerca de 945 terawatts-hora (TWh) por ano — energia equivalente ao consumo elétrico do Japão hoje. Só que, dessa vez, o interesse norte‑americano traz um ingrediente extra: a disputa geopolítica por infraestrutura digital. E Itaipu, com seus 14 mil megawatts de potência instalada, aparece como peça-chave nesse tabuleiro.

O apetite dos data centers

No lado paraguaio, o movimento já começou. A mineradora canadense Hive Digital inaugurou um data center em Yguazú em abril e tem outra instalação em construção em Valenzuela, direcionada à mineração de criptomoedas — um setor sedento por megawatts. Paralelamente, o governo do Paraguai planeja investir US$ 19,4 milhões em um centro de dados para armazenar informações públicas.

Esses projetos multiplicam a demanda por eletricidade: em 2024 o Paraguai consumiu cerca de 31% da energia produzida por Itaipu, enquanto o Brasil consumiu 69% — um descompasso frente à divisão prevista no acordo binacional, que aponta 50% para cada país. Projeções da Administradora Nacional de Eletricidade (ANDE) indicam que, se a corrida por data centers seguir, o Paraguai poderia vir a utilizar toda a energia disponível até 2035.

O secretário de Estado norte‑americano, Marco Rubio, chegou a confirmar interesse no excedente energético paraguaio para abastecer data centers de IA. É a materialização de uma pauta que combina tecnologia, capital e geopolítica.

Colonização sem tanques

O interesse externo por Itaipu não é apenas econômico: é político. Observadores e analistas descrevem esse movimento como uma nova face da colonialidade tecnológica — onde o Sul Global funciona como fornecedor passivo de insumos estratégicos: sem decidir, sem comandar, sem se beneficiar.

O que está em jogo é o controle da base material da computação: cabos, servidores, energia. Não se trata de tanques, mas de infraestrutura que permite a terceiros treinar modelos gigantescos, capturar dados e definir normas de funcionamento de uma economia digital que, cada vez mais, determina decisões, comportamentos e fluxos de riqueza.

Defender Itaipu, nesse contexto, passa a ser defender o direito do Sul Global de existir como sujeito político diante de uma nova ordem digital que o quer, novamente, como periferia. É também recusar a fantasia da inovação que, vendida sem contrapartidas reais, apenas reconfigura a dependência.

O trunfo diplomático do Brasil

Se há umcenário preocupante, há também oportunidade. O Brasil pode transformar a energia de Itaipu em instrumento de negociação e buscar contrapartidas concretas nas relações com os Estados Unidos — inclusive redução de tarifas comerciais — em troca de acordos que garantam governança, benefícios econômicos e transferência tecnológica para a região.

Mas isso exige estratégia: negociar não é simplesmente ceder megawatts. É condicionar acesso a compromissos verificáveis de investimento, desenvolvimento de capacidade local, proteção de dados e regras claras de controle sobre as infraestruturas. Sem isso, as benesses prometidas podem se reduzir a contratos assimétricos que perpetuam a dependência.

Mais turbinas? Repotenciação? O dilema técnico e financeiro

Para atender à crescente demanda, Itaipu cogita a instalação de duas novas turbinas que aumentariam a potência nominal, embora a própria binacional afirme que "não há estudos técnicos, sociais ou ambientais em andamento" sobre essa hipótese, nem previsão de tratativas. Por outro lado, o diretor‑geral brasileiro da usina, Ênio Verri, declarou em julho que a construção das turbinas é "inevitável" — ainda que sem cronograma confirmado.

Além da construção, outra via é a repotenciação das unidades existentes: ampliar a produtividade sem mexer no volume de água. O Conselho de Administração autorizou a contratação de consultoria para avaliar essa viabilidade — estudo em fase inicial. O entrave é financeiro: novo investimento de grande porte exigiria concordância binacional e possivelmente apoio de instituições como o Banco Mundial ou o BNDES.

O futuro em disputa

Seja por meio de turbinas novas ou de repotenciação, a energia de Itaipu será cada vez mais cobiçada. E, nessa disputa, o Brasil tem uma decisão a tomar: aceitar ser apenas provedor invisível de uma infraestrutura que não controla, ou usar sua posição para negociar soberania, capacidades locais e benefícios duradouros.

Defender Itaipu hoje é mais que proteger um ativo físico: é assegurar que nosso território, nossas águas e nossa energia não sejam postos a serviço de objetivos que não decidimos. É exigir que a Inteligência, antes de Artificial, seja nossa.


Fontes

  • Reportagem original no Terra.
  • Informações e declarações de Enio Verri e Itaipu: Agência Brasil e Gazeta do Povo (cobertura consolidada).
  • Projeções sobre demanda de data centers: Agência Internacional de Energia (IEA).
  • Dados da Administradora Nacional de Eletricidade (ANDE) sobre consumo paraguaio.
© Sulpost — jornalismo independente. Reportagem e autoria: Ronald Stresser. Para apoio ao nosso trabalho, contribua via Pix no rodapé.