Mesmo longe do poder, o “Gabinete do Ódio” seguiu operando nos bastidores. Relatório da PF revela nova tentativa de manipular a verdade — desta vez, mirando o governo Lula
Há estruturas que não se desmontam com uma derrota nas urnas. Algumas resistem no subterrâneo do poder, nas salas escuras do Estado, nos corredores onde a democracia perde a voz. E foi ali, longe dos holofotes, que um dos esquemas mais sombrios da política recente brasileira continuou a operar — mesmo após o fim do governo Jair Bolsonaro.
Essa é a principal revelação do relatório final da Polícia Federal sobre a chamada Abin paralela, um braço clandestino de inteligência usado para fins políticos. Um sistema montado, financiado e coordenado para proteger aliados, destruir adversários e reescrever os fatos — com o verniz da autoridade institucional.
No centro da operação, um nome ressurge: Carlos Bolsonaro, vereador carioca e filho do ex-presidente, agora identificado pela PF como idealizador e operador da estrutura que uniu o “Gabinete do Ódio” à espionagem ilegal da Abin. Não como peça lateral, mas como mente central. O fio condutor de uma máquina feita para manipular a opinião pública, sabotar investigações e, sobretudo, manter o clã Bolsonaro acima da lei.
Espionagem, farsa e silêncio
Segundo a Polícia Federal, foi Carlos quem articulou a integração entre funcionários da Presidência e agentes da Agência Brasileira de Inteligência. Não por motivos de Estado — mas por motivos de interesse pessoal e político.
Mensagens reveladas pela investigação mostram que ele e o pai, Jair Bolsonaro, escolhiam alvos, determinavam missões e recebiam relatórios de inteligência forjada. Entre esses alvos, estavam ministros do STF, jornalistas, opositores políticos e até integrantes do próprio governo Lula. A engrenagem funcionava a partir de softwares espiões e grupos secretos de comunicação, em uma rede que misturava gabinete, milícia digital e sabotagem institucional.
O caso mais recentemente exposto pela PF é simbólico: a tentativa de fabricar um falso gabinete do ódio petista. A operação envolveu Richard Posner, ativista bolsonarista, e Daniel Lemos, assessor do deputado Pedro Júnior (PL-TO). Eles manipularam conversas de um grupo de WhatsApp de apoiadores de Lula — o “Caçadores de Fake News” — para tentar incriminar o então ministro da Secretaria de Comunicação, Paulo Pimenta.
O objetivo era simples e brutal: fingir que o atual governo usava as mesmas táticas sujas atribuídas ao bolsonarismo, invertendo o espelho da verdade para confundir a sociedade. “Mais uma prova cabal do gabinete do ódio”, escreveu Posner a um interlocutor. Mas a prova era forjada. O grupo era legítimo, e os prints haviam sido retirados de contexto, distorcidos, adulterados.
Modus operandi
Não foi um caso isolado. A Polícia Federal afirma que a estrutura que operou na pandemia, na campanha eleitoral de 2022 e na tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023, nunca foi desmobilizada. Apenas mudou de foco.
A espionagem que antes atacava adversários de campanha, passou a mirar integrantes do Judiciário, servidores públicos e até outros parlamentares. O relatório mostra que um homônimo do ministro Alexandre de Moraes teve o celular monitorado — uma tentativa, talvez, de infiltrar dados do próprio magistrado.
Foi essa estratégia de confusão e desinformação que sustentou, por tanto tempo, a retórica de ódio que assolou o país. Não por acaso, a PF classificou a estrutura como uma organização criminosa.
Carlos Bolsonaro agora é formalmente investigado. Segundo os delegados do caso, ele exercia “função de liderança” no grupo, com “influência hierárquica” e controle direto sobre os fluxos de informação. Ainda não foi indiciado, pois há conexão com inquéritos anteriores. Mas o cerco se fecha.
O Poderoso Chefão
Jair Bolsonaro também figura nos documentos. A PF o descreve como “principal destinatário” das informações produzidas pela Abin paralela. Segundo o relatório, o ex-presidente não apenas sabia do funcionamento da máquina, como a utilizava como recurso pessoal — inclusive para se antecipar a operações da Polícia Federal.
As provas sugerem que ele e Carlos operavam em conjunto. Um projeto de poder que desafiava as regras republicanas, buscando instalar uma nova lógica: onde Estado e família se confundem, onde política e paranoia andam lado a lado.
A resposta do clã tem sido o silêncio. Carlos se recusou a prestar depoimento. Jair se diz perseguido. E aliados repetem o discurso da vitimização — mesmo diante de evidências robustas.
O preço do esquecimento
A tentativa de criar um gabinete do ódio petista não foi apenas um gesto desesperado. Foi a repetição da tática mais eficaz da extrema-direita brasileira: inverter os fatos, confundir os culpados, fingir equilíbrio onde há assimetria.
Não se trata mais de proteger um projeto político. Trata-se de sustentar uma narrativa capaz de sobreviver à verdade, mesmo que, para isso, seja preciso destruir reputações, instituições e até o próprio país.
A pergunta que fica é: por quanto tempo o Brasil aceitará ser governado das sombras?
O silêncio que grita
Há um detalhe que os documentos oficiais não conseguem descrever com exatidão: o impacto simbólico dessa máquina de desinformação. O que ela gera na confiança social, na legitimidade do Estado, na esperança de que o voto e a Constituição ainda valham alguma coisa.
O gabinete do ódio pode ter perdido seus cargos, mas ainda opera. Não mais dentro do Palácio, mas do lado de fora, em ambientes onde a lei demora a chegar.
Como nas tragédias mal encerradas, o que não foi resolvido volta. E volta com mais força.
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