Por trás da aparente ternura de um bebê de silicone aninhado no colo de uma mulher solitária, pulsa um alerta: o amor humano está sendo domesticado para caber em moldes que não exigem reciprocidade, sacrifício nem laço verdadeiro. Não é só afeto artificial — é engenharia social a serviço da desumanização
Em um mundo onde se adota um cão como filho, se embala uma boneca como bebê e se aprova projeto de lei para garantir “acolhimento psicossocial” a quem vive esse tipo de relação, surge uma pergunta desconfortável, porém urgente: o que está sendo feito com o conceito de família?
A deputada Rosângela Moro (União-SP), ao propor que o Estado ofereça suporte emocional a pessoas que criam vínculos afetivos com brinquedos, abriu oficialmente uma nova frente no já agitado front da guerra cultural: a relativização da família — agora também por dentro da direita. Isso mesmo. A mesma direita que, até ontem, dizia proteger valores tradicionais, agora começa a flertar com bandeiras que antes criticava ferozmente, desde que elas rendam votos.
Esse tipo de jogada política, que no fundo nada tem de ingênua, é espelho invertido daquilo que a esquerda identitária fez nas últimas décadas: enfraquecer o conceito de família humana enquanto projeto coletivo e civilizatório, promovendo versões fragmentadas e autossuficientes de afeto — desde que cada indivíduo tenha a sua “identidade afetiva” protegida. Agora, a direita mimetiza o jogo e o transforma em mercadoria legislativa.
E para quê? Para agradar nichos, lacrar nas redes, parecer “moderna” sem ser — e, principalmente, desconstruir o último reduto de resistência cultural real que ainda resta ao ser humano comum: a família enraizada em cuidado mútuo, paciência, renúncia e memória.
Uma epidemia de vínculos simulados
Cães e gatos sempre foram grandes amigos da humanidade. Mas há uma linha tênue entre o carinho saudável e a substituição simbólica do filho ou do neto por um pet que não contesta, não sofre, não adoece (pelo menos emocionalmente). A febre dos “filhos de quatro patas” é, em muitos casos, um sintoma — não de afeto, mas de carência afetiva profunda travestida de modernidade.
E o fenômeno dos bebês reborn é ainda mais revelador. De acordo com levantamento recente, o número de pessoas que trata bonecos de silicone como filhos vem crescendo no Brasil. Elas os vestem, alimentam (simbolicamente), levam ao parque e até os levam a consultas — com médicos de verdade. O Estado começa a legislar para elas. E não se trata apenas de saúde mental. Trata-se de política. E de votos.
O que antes seria visto como delírio individual começa a se tornar bandeira pública. Isso interessa à máquina do poder. O império financeiro e midiático que governa o mundo por algoritmos, e, algoritmos por emoções, entende perfeitamente o valor de transformar indivíduos carentes em consumidores leais. Pessoas que amam bonecos são mais facilmente convencidas a amar políticos igualmente vazios.
O fim da memória coletiva
O ataque à família, por mais que seja negado pelos moderninhos de plantão, é um projeto. E um projeto antigo. Foi forjado no pós-guerra, quando universidades como Harvard e a Sorbonne cunharam o identitarismo como resposta ao avanço das ideias socialistas. A lógica era simples: fragmente a luta coletiva em causas individuais, e você elimina o potencial revolucionário. Um povo que briga por banheiros unissex não constrói revoluções.
De lá para cá, a erosão da família foi sendo normalizada: pai virou opressor, mãe virou símbolo de sofrimento e submissão, avós viraram ultrapassados e crianças viraram projeto de identidade em construção. O resultado é a dissolução de vínculos reais — aqueles que exigem compreensão, esforço, perdão, escuta e presença.
Em lugar disso, do que realmente importa, os simulacros ganham terreno. O bebê reborn não chora de verdade, não tem cólica, não exige noites em claro. O cachorro tratado como filho não se rebela na adolescência. O parceiro virtual não tem cheiro, passado, manias ou vícios. E o “influencer de nicho”, novo modelo de sucesso da Geração Z, não precisa trabalhar, estudar ou construir algo com outros. Basta performar. Ganhar curtidas, viralizar e monetizar a performance.
O vazio que eles chamam de liberdade
A tragédia é que tudo isso parece — e às vezes até se sente — como liberdade. Liberdade de viver como se quer, de amar o que se quiser, de montar o próprio modelo de família. Mas, no fundo, é uma liberdade plastificada, egoísta, vendida em prestações, moldada por interesses que não têm o menor amor por ninguém.
A Geração Z é o retrato mais acabado dessa crise. Crianças que cresceram sozinhas no quarto, adolescentes que se acham especiais demais para viver as frustrações da vida comum, adultos que esperam herança para nunca ter que produzir. Muitos se refugiam na rede, no discurso, no nicho, na bolha ou círculo de conforto. E não percebem que estão cada vez mais isolados, mais frágeis, mais manipuláveis.
Quem ganha com isso? Os mesmos de sempre: os grandes, os donos do sistema, os que enxergam em cada "família desconstruída" um novo cliente, em cada “nova forma de amar” uma nova política para se eleger. Foi assim com os Moro, com os Bolsonaro e mesmo com nomes populares da esquerda.
O identirarismo, a pauta identitária está gerando uma onda egoísta, divisora, que dissolve a família, caysando a erosão das bases da sociedade. Mas para eles, os políticos inescripulosos e safados, tudo bem, porque a cada voto, um aplauso para a farsa. Cada projeto, um prego no caixão da humanidade que conhecíamos. É até paeadoxal mas chegamos a pensar que o ser humano parece ter esquecido de como é ser realmente humano.
Resistir ainda é possível?
A resposta é sim. Mas não será nas redes, nem nas rodinhas de lacração. Será na reconstrução silenciosa dos laços reais: pai, mãe, avô, filho, amigo, vizinho. Pessoas com nome, cheiro, defeitos e histórias. Pessoas de verdade. Laços que não cabem em algoritmo, que não se compram em pet shop, que não viram pauta política para oportunistas.
Ainda dá tempo de lembrar que amor não é simulação. Que família não é fetiche. Que vínculos reais são o que sustentam a memória da espécie. O resto — boneco, discurso ou projeto de lei — é só esvaziamento com embalagem de afeto.
*Ronald Stresser é jornalista, escritor, arquiteto da informação e editor-chefe do blog Sulpost.


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