Noite de sangue nos trilhos: Cajuru chora a 31ª vida perdida em Curitiba — a cidade pede, em voz alta, que os antigos trilhos de transporte de carga saiam da área urbana
Stresser, para o Sulpost
Curitiba - Na escuridão da Rua Sebastião Marcos Luiz, no Cajuru, a cidade perdeu ontem (18) mais um homem — 51 anos — que tentou cruzar os trilhos enquanto uma locomotiva se aproximava. Os socorristas do Corpo de Bombeiros encontraram-no sem vida; a visibilidade no local foi descrita como “péssima”. O corpo seguiu para o IML e a identidade não foi divulgada.
Essa morte não é um fato isolado nem um erro da sorte: é o acúmulo de décadas em que uma ferrovia centenária, construída no período imperial, continua a cortar bairros densos de Curitiba — Centro, Cabral, Alto da XV, Cristo Rei, Cajuru, Uberaba — trazendo ruído, interrupção do trânsito, medo e, por vezes, a perda irrecuperável de vidas. Em Curitiba há cerca de 37 quilômetros de trilhos urbanos e 45 passagens de nível, muitos pontos onde pedestres e veículos cruzam a rota das composições.
Entre 2019 e 2023, o Brasil contabilizou 739 mortes em acidentes ferroviários; o Paraná aparece em terceiro lugar entre os estados com mais óbitos, e a capital registrou 31 dessas mortes no mesmo período — um número que transforma o problema em urgência pública. Os dados mostram que Curitiba figura entre as capitais mais afetadas por sinistros envolvendo trens de carga e área urbana.
O que sente a cidade — e o que perdem as famílias
Há uma sequência de pequenas cenas que se repetem: alguém apressado atravessa no último segundo; um ônibus ou carro retido no cruzamento; a buzina que atravessa a madrugada; a vizinhança que acorda com o estrondo de uma composição de carga rasgando o silêncio da madrugada. Quando a tragédia acontece, o vazio é duplo: além da ausência física, sobra a pergunta — será que mais essa morte podia ter sido evitada? — que nenhuma autoridade gosta de responder num velório.
Ao lado do número, há vidas que se vão: avós que deixam netos sem história para contar; filhos que perdem pais, mães; amigos que tentam formatar memórias em direção a um sentido lógico. Transformar essas perdas em estatística é o caminho mais fácil — e o menos humano. Transformá-las em políticas e obras que preservem vidas é a saída que bairros como Cajuru vêm pedindo há anos.
Por que o problema persiste
A ferrovia que corta Curitiba é parte da malha de escoamento que leva safras ao porto de Paranaguá. É concessão federal explorada por operadores de carga; sua importância econômica muitas vezes pesa mais nas decisões do que a segurança local. A negociação da renovação da concessão, os interesses do agronegócio e os limites orçamentários tornam o contorno ferroviário — solução de longo prazo — algo demorado. Enquanto isso, a ferrovia continua onde sempre esteve: no meio do caminho das pessoas.
O que pode ser feito — e rápido — antes do contorno
A promessa de retirar os trilhos da malha urbana é necessária, mas distante. Há, contudo, ações concretas e urgentes que podem reduzir substancialmente o risco imediato. Estas medidas não substituem o contorno ferroviário — mas salvam vidas enquanto as obras maiores não saem do papel:
- Cancelas automáticas, sinais sonoros e luminosos em todas as passagens de nível — sobretudo nos pontos críticos identificados por estudos técnicos (como a própria Rua Sebastião Marcos Luiz). Projetos na Câmara de Curitiba defendem essa obrigatoriedade às concessionárias.
- Iluminação reforçada e limpeza das margens para ampliar a visibilidade noturna: remoção de vegetação, entulho e obstáculos perto das travessias reduz a chance de surpresas e aumenta o tempo de reação. Estudos técnicos apontaram trechos com visibilidade comprometida como responsáveis por parcela significativa dos acidentes.
- Sistemas de aviso prévio digital (alerta PN/semáforos conectados) que integrem a aproximação das composições ao sistema viário local, acionando semáforos e barreiras com antecedência suficiente — tecnologia já testada e com resultados de redução de sinistros.
- Campanhas comunitárias e educativas focadas em horários críticos (noite) e em bairros mais afetados. A ANTT já realiza ações desse tipo; é preciso ampliar a frequência e a cobertura, com material claro, placas educativas permanentes e diálogo com escolas e lideranças locais.
- Fiscalização rigorosa e metas de redução por parte da ANTT e dos órgãos municipais: acordos formais que condicionalizem a operação a prazos e investimentos claros em segurança nas travessias urbanas.
Uma decisão política — e moral
Em abril, o prefeito Eduardo Pimentel levou ao Governo Federal o pedido pela retirada dos trens de dentro da cidade e debatia alternativas como contornos, trincheiras e viadutos. Não se trata de combater o transporte de cargas — trata-se de realocar seu trajeto para longe do tecido urbano, reduzindo custos humanos e de mobilidade. A alternativa é manter a cidade em estado de permanente risco.
Em termos práticos: qual é a prioridade do Estado? Uma ponte para Guaratuba ou um contorno ferroviário que impede mortes e libera a cidade dos engarrafamentos causados por composições que cruzam bairros? A resposta técnica pode incluir as duas obras, mas a resposta humana diz: evitar mortes e prejuízos primeiro.
Do luto à ação
A perda do homem de 51 anos no Cajuru precisa ser registrada — não apenas nas estatísticas, mas na agenda das autoridades. É necessário que a Prefeitura, o Governo do Estado, a ANTT e a concessionária envolvida assumam um cronograma claro e público de intervenções emergenciais: iluminação, cancelas, limpeza das margens, sistemas de alerta e campanhas educativas locais. E, paralelamente, que acelerem estudos e recursos para o contorno ferroviário.
Para os moradores, para os pais que levam filhos à escola, motoboys, motoristas de aplicativo, para quem espera o ônibus travado no cruzamento, a exigência é simples: menos desculpas, mais providências. Para as autoridades, é um teste de prioridade entre o econômico, o político e o humano. Para nós, jornalistas e cidadãos, é imperativo manter a pressão — até que os trilhos deixem de ser um risco cotidiano e voltem a ser apenas memória histórica.
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