segunda-feira, 28 de abril de 2025

Araguainha: a cratera brasileira que conta a história da vida na Terra

No coração do Brasil, uma ferida antiga revela como o universo mudou para sempre a história da Terra

Por Ronald Stresser*
 
 

No coração do Brasil, onde o sul de Goiás se mistura com o nordeste de Mato Grosso, uma cicatriz antiga rasga discretamente a paisagem. Vista do alto, ela revela seu segredo: um imenso círculo gravado na Terra, testemunha silenciosa de um passado tão remoto quanto extraordinário. É a cratera de Araguainha — a marca colossal deixada por um instante de fúria cósmica que, há cerca de 254 milhões de anos, redesenhou para sempre a história do nosso planeta.

Com seus impressionantes 40 quilômetros de diâmetro, Araguainha é muito mais do que uma ferida aberta na crosta terrestre. É uma janela entreaberta para o fim de uma era — o Período Permiano —, momentos antes da maior extinção em massa que a Terra já enfrentou.

Sua redescoberta foi fruto do acaso. Na década de 1960, equipes da Petrobras, então em busca de petróleo, cruzavam aquelas terras com instrumentos e mapas quando se depararam com algo que os intrigou profundamente. Entre rios e cerrados, a superfície parecia ter sido empurrada, dobrada, moldada por forças invisíveis.  

A curiosidade acendeu nos geólogos a faísca de uma investigação que, anos depois, revelaria que aquele pedaço de chão guardava muito mais do que segredos subterrâneos: guardava a memória de um impacto vindo das estrelas.

No começo, pensou-se que se tratava de uma estrutura geológica interna — talvez fruto das forças que modelam silenciosamente o interior da Terra. Mas, em 1973, as evidências falaram mais alto: o formato circular perfeito, os cones de estilhação, os minerais deformados sob pressões inimagináveis... Tudo apontava para um impacto meteórico de proporções cataclísmicas.

O asteroide que ali se chocou, calculam os cientistas, tinha entre 2 e 3 quilômetros de diâmetro. A colisão liberou uma energia equivalente a milhares de bombas nucleares, deformando a crosta, projetando um anel central para cima e deixando, como marca eterna, o Domo de Araguainha.

E talvez o estrago tenha ido muito além do que se pode ver. Há quem acredite que o impacto foi mais do que uma explosão local — teria sido o prenúncio de uma das maiores tragédias da história da vida. No apagar das luzes do Período Permiano, quando os continentes ainda formavam um mundo estranho e primitivo, cerca de 90% das espécies marinhas e 70% das espécies terrestres desapareceram. Como se um sopro devastador tivesse varrido quase toda a diversidade que havia brotado até então.

A relação direta entre Araguainha e essa extinção colossal ainda é debatida entre os cientistas. Mas sobre um ponto há consenso: o impacto que moldou aquele canto silencioso do Brasil profundo foi brutal o suficiente para deixar cicatrizes que o tempo jamais conseguiu apagar.

Sítio de memória e ciência

Hoje, Araguainha é muito mais do que um círculo desenhado na terra ou uma curiosidade para especialistas. É um monumento natural à memória do nosso planeta — um dos cem sítios escolhidos pela União Internacional das Ciências Geológicas como fundamentais para entender a tumultuada história da Terra.

Entre os representantes brasileiros que alcançaram esse feito, Araguainha se junta a dois gigantes: o icônico Pão de Açúcar, no Rio de Janeiro, e o histórico Quadrilátero Ferrífero, em Minas Gerais — lugares que, cada um à sua maneira, contam capítulos essenciais da nossa formação geológica.

Mas enquanto o Pão de Açúcar se ergue como um cartão-postal à beira da Guanabara, e o Quadrilátero Ferrífero ostenta as riquezas que ajudaram a construir cidades inteiras, Araguainha guarda algo mais primitivo, mais essencial: a lembrança de um tempo em que o próprio planeta precisou recomeçar.  

Entre vales silenciosos e rochas moldadas pela força do impacto, a Terra sussurra sua história mais antiga — uma história de resistência, destruição e renascimento.

"Ela é uma cratera extraordinariamente preservada, com todas as feições que nos ajudam a entender como a superfície da Terra responde a impactos dessa magnitude", conta Joana Sanches, professora de Geologia da Universidade Federal de Goiás (UFG) e a única brasileira a integrar a comissão internacional que escolheu os cem sítios mais importantes do mundo.

Falando com a paixão de quem vê nas pedras uma narrativa viva, Joana descreve a cratera como um livro aberto que o tempo esqueceu de fechar.  

"Cada fissura, cada dobra, cada detalhe preservado é uma linha escrita pela própria Terra", diz. "Ali, nas rochas silenciosas, estão gravadas lições valiosas sobre quem somos, de onde viemos... e, talvez, para onde estamos indo."

Ela lembra que, assim como o Pão de Açúcar narra a colisão de placas tectônicas que separou África e América do Sul, Araguainha registra um capítulo dramático da história planetária — um capítulo escrito não pela lentidão dos continentes, mas pela súbita fúria do espaço.

Vida entre as pedras

Apesar de seu valor científico, a vida ao redor de Araguainha segue tranquila, quase alheia à grandiosidade que repousa sob os pés. Pequenas propriedades rurais pontilham a região; estradas de terra cortam campos verdes que se estendem até onde a vista alcança. Para muitos moradores, a cratera é apenas parte da paisagem — uma formação curiosa, mas cuja magnitude ainda passa despercebida.

Para quem sabe o que procurar, porém, as pistas estão por toda parte: rochas retorcidas, dobras gigantescas, vales que parecem contar, em silêncio, uma história de violência e transformação.

E Araguainha não está sozinha. O Brasil guarda outras memórias do cosmos, como a Cratera de Serra da Cangalha, no Tocantins, com seus 12 quilômetros de diâmetro, e a Cratera de Vista Alegre, no Paraná, com 9,5 quilômetros. Mais ao sul, na Argentina, a possível Cratera de Bajada del Diablo, na Patagônia, aguarda confirmação.

O impacto das estrelas

Assim como a famosa Cratera de Chicxulub, no México — associada ao fim dos dinossauros —, Araguainha é um lembrete eloquente da fragilidade da vida diante das forças que rondam o cosmos.  

Por milhões de anos, a Terra pareceu imutável. Mas, num piscar de olhos cósmico, tudo pode mudar.

"O Domo de Araguainha conta a história da vida, da morte e da transformação", resume Joana Sanches. "É um testemunho silencioso de que estamos todos ligados ao universo, participando de uma dança delicada e imprevisível."

E talvez seja justamente isso que torne Araguainha tão fascinante: no meio de uma paisagem calma e esquecida, ela nos lembra que o mundo, tão firme sob nossos pés, é mais frágil — e mais extraordinário — do que ousamos imaginar.

*com informações da UFG.

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