Audiência pública no STJ expõe preocupações científicas, jurídicas e sociais sobre a exploração de gás por fraturamento hidráulico
Por Ronald Stresser — 14 de dezembro de 2025
Por detrás dos tubos de aço, das altas pressões e promessas de desenvolvimento, existe uma técnica que carrega impactos profundos e duradouros. O fraturamento hidráulico — conhecido mundialmente como fracking — voltou ao centro do debate nacional durante uma audiência pública realizada na quinta-feira (11), no Superior Tribunal de Justiça (STJ), em Brasília. Pesquisadores, ambientalistas, representantes do governo e entidades da sociedade civil alertaram para riscos hídricos, climáticos e sanitários associados à exploração de gás natural não convencional no Brasil.
O fracking funciona a partir da injeção de milhões de litros de água misturada com areia e produtos químicos em altíssima pressão, com o objetivo de provocar fissuras em rochas do tipo folhelho — também chamadas de xisto. Essas formações têm baixa permeabilidade, o que dificulta a liberação do gás aprisionado. O método, portanto, exige intervenções mais agressivas no subsolo do que a exploração convencional de gás natural.
No Brasil, a discussão não é nova. Desde 2013, setores interessados tentam viabilizar a técnica. Naquele ano, a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) realizou uma licitação para pesquisa e extração por fraturamento hidráulico, concedendo blocos no Paraná e em São Paulo. O avanço, no entanto, foi barrado por ações civis públicas do Ministério Público Federal (MPF), que na prática anularam os efeitos da licitação.
A audiência no STJ teve como objetivo reunir informações técnicas e científicas para subsidiar o julgamento de processos que tratam da legalidade e dos riscos da atividade. E o que emergiu do debate foi um alerta contundente.
Consumo extremo de água e contaminação irreversível
O Instituto Arayara, organização ambiental sem fins lucrativos, destacou que o fracking exige um consumo hídrico extremo: entre 5,7 milhões e 61 milhões de litros de água por poço. Essa água, após misturada com substâncias tóxicas e potencialmente cancerígenas, torna-se imprópria para qualquer uso prioritário.
Além disso, há o risco real de contaminação de aquíferos e mananciais, comprometendo reservas estratégicas de água doce. “Estamos falando de piscinas químicas e radioativas vindas do subsolo, espalhadas por centenas de cidades”, alertou o engenheiro ambiental Juliano Bueno de Araujo, diretor técnico do Instituto Arayara e da Coalização Não Fracking Brasil (Coesus).
Segundo ele, os municípios brasileiros não possuem estrutura técnica nem capacidade de fiscalização para lidar com uma atividade dessa complexidade e risco. Dados do instituto indicam que mais de 524 cidades, em 17 estados, já aprovaram leis municipais que restringem o uso de água de superfície e a emissão de alvarás para atividades que utilizem o fraturamento hidráulico.
Clima, metano e incompatibilidade com metas ambientais
A bióloga Moara Menta Giasson, diretora do Departamento de Políticas de Avaliação de Impacto Ambiental do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, foi categórica. Em entrevista concedida à Agência Brasil ela afirmou que: não existem padrões de segurança ambiental consolidados para o uso do fracking no Brasil.
Segundo ela, a técnica apresenta altos índices de emissões fugitivas de metano — um gás com potencial de aquecimento global muito superior ao do dióxido de carbono. “Isso torna a exploração não convencional incompatível com as metas climáticas do país”, afirmou.
Giasson também lembrou que, de acordo com a Política Nacional de Recursos Hídricos, a água é um bem público, com uso prioritário para consumo humano e animal. “A água utilizada no fracking perde completamente essa função após a mistura com compostos tóxicos”, destacou.
Para a bióloga, mesmo com regras rígidas, acidentes são inevitáveis. E quando ocorrem em áreas de escassez hídrica ou sobre aquíferos estratégicos, o dano pode ser definitivo. “É a água dos nossos filhos e netos que está em jogo”, alertou.
Impactos à saúde: evidências científicas
A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) levou à audiência dados preocupantes sobre os efeitos do fracking na saúde humana. A pesquisadora Bianca Dieile da Silva, da Escola Nacional de Saúde Pública, apresentou estudos que apontam aumento significativo de problemas respiratórios em regiões onde a técnica é utilizada.
“Em estados norte-americanos que adotaram o fracking, houve aumento de 25% nas internações de crianças com asma”, afirmou. Os impactos, segundo ela, vão além: há registros de câncer, especialmente do trato urinário, distúrbios endócrinos, complicações em recém-nascidos, partos prematuros, malformações congênitas e até mortes.
O outro lado: setor energético defende a técnica
Representantes do setor de petróleo e gás defenderam que o fracking pode ser realizado com segurança e trazer benefícios econômicos ao país. O diretor-geral da ANP, Artur Watt Neto, afirmou que as normas brasileiras estão entre as mais rigorosas do mundo e que a técnica só é autorizada quando há isolamento adequado entre as camadas exploradas e os recursos hídricos.
Ele também argumentou que a produção de novas fontes energéticas é estratégica para o desenvolvimento nacional e que a demanda global por combustíveis não desaparece quando um país deixa de produzir. “A atmosfera é uma só”, disse.
Na mesma linha, Adriano Pires Rodrigues, consultor e cofundador da Associação Brasileira dos Produtores Independentes de Petróleo e Gás (ABPIP), citou o aumento do consumo energético impulsionado por data centers e inteligência artificial. Para ele, a transição energética não pode abrir mão do gás.
Rebate e dados da realidade brasileira
Juliano Bueno de Araujo rebateu os argumentos com dados concretos. Segundo ele, o gás natural representa apenas 9,6% da matriz energética brasileira e 6,3% da matriz elétrica. Mais do que isso: em 2024, 54,3% do gás produzido no país foi reinjetado por falta de demanda. Em 2025, de janeiro a outubro, esse número chegou a 54,4%.
“Ou seja, não falta gás. Falta planejamento energético e compromisso com alternativas realmente sustentáveis”, afirmou.
Lições do cenário internacional
Experiências internacionais também foram trazidas à audiência. A advogada Marcella Torres, da Associação Interamericana para a Defesa do Ambiente (AIDA), apresentou dados oficiais da Argentina, onde o fracking é amplamente utilizado na região de Vaca Muerta.
Segundo ela, os acidentes ambientais em Neuquén saltaram de 863 em 2015 para 2.049 seis anos depois. Entre maio de 2021 e abril de 2022, foram gerados cerca de 389 mil litros de líquidos contaminados por dia.
“Os riscos do fracking não são hipotéticos. Eles estão amplamente documentados. E quando os danos acontecem, são irreversíveis”, afirmou.
A audiência no STJ escancarou um dilema que vai além da técnica: trata-se de uma escolha de modelo de desenvolvimento. Entre a pressa por explorar o subsolo e o dever de proteger a água, o clima e a saúde coletiva, o Brasil se vê diante de uma decisão que marcará gerações.

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