Enquanto o país avança na transformação do lixo orgânico em energia, a reciclagem tradicional segue engatinhando. Os números expõem um retrato desigual, silencioso e profundamente humano da gestão de resíduos no Brasil
© Marcello Casal Jr./Agência Brasil
O caminhão passa cedo. O barulho metálico ecoa pelas ruas, engole sacos pretos, caixas de papelão, restos de comida, embalagens, tudo misturado. Para a maioria dos brasileiros, o lixo desaparece ali, na esquina. Mas o que acontece depois revela um país que ainda não decidiu o destino do que consome — e, por extensão, o destino do próprio futuro.
Os dados mais recentes sobre resíduos sólidos urbanos no Brasil, com ano-base 2024, escancaram uma contradição profunda: o país começa a avançar na transformação do lixo orgânico em energia, mas segue patinando no básico — a reciclagem de papel, vidro, plástico e alumínio.
Segundo o Panorama dos Resíduos Sólidos Urbanos, o Brasil gerou cerca de 81,6 milhões de toneladas de lixo em 2024. Quase tudo foi coletado, mas apenas 59,7% recebeu destinação ambientalmente adequada, em aterros sanitários. O restante ainda tem como destino lixões, áreas irregulares ou simplesmente some do controle público.
Quando o orgânico avança e o reciclável fica para trás
Um dado chama atenção e quebra uma lógica histórica.
Ao quantificar de forma unificada os diferentes tipos de reaproveitamento, os números mostram que a chamada reciclagem bioenergética — que inclui a transformação de resíduos orgânicos em biogás, biometano ou composto — já alcança 11,7% do total de resíduos gerados no país.
Enquanto isso, a reciclagem mecânica dos resíduos secos, como papel, vidro, plástico e alumínio, chega a apenas 8,7%.
Na prática, o Brasil passou a aproveitar mais o que apodrece do que aquilo que poderia voltar facilmente à cadeia produtiva. É um paradoxo: o país já consegue gerar energia a partir do lixo, mas ainda não consegue separar corretamente o lixo dentro de casa.
Reciclar no Brasil ainda depende de quem vive do lixo
Por trás dos números frios existe uma realidade social que raramente aparece nos relatórios.
Grande parte da reciclagem brasileira ainda depende do trabalho de catadores e catadoras, responsáveis por mais de 60% do material efetivamente recuperado. São eles que sustentam, na prática, um sistema que o poder público nunca conseguiu estruturar plenamente.
Embora cerca de 60,5% dos municípios declarem ter coleta seletiva, esse serviço muitas vezes não cobre toda a área urbana. Em bairros periféricos, cidades pequenas e áreas rurais, separar o lixo ainda é privilégio — quando não é impossibilidade.
O resultado aparece em outro dado alarmante: cerca de 4,7 milhões de domicílios brasileiros ainda queimam seus resíduos, sobretudo fora dos grandes centros urbanos, agravando problemas respiratórios, ambientais e de saúde pública.
Lixões: a ferida aberta da desigualdade
Mais de uma década após a proibição legal, os lixões continuam sendo parte da paisagem brasileira.
Quase 32% dos municípios ainda destinam resíduos a lixões. No Norte, esse percentual ultrapassa 70%. No Nordeste, passa de 50%. Já no Sul, cai para cerca de 5%, mostrando que o problema não é técnico — é político, econômico e de prioridade pública.
O mapa do lixo no Brasil acompanha, com precisão, o mapa da desigualdade social.
Logística reversa: um sistema que existe, mas não chega a todos
O panorama mais recente também analisou a situação da logística reversa, um dos pilares da Política Nacional de Resíduos Sólidos.
Atualmente, o Brasil possui 13 sistemas de logística reversa, que abrangem:
- Agrotóxicos
- Baterias de chumbo-ácido
- Eletroeletrônicos
- Embalagens de aço e de vidro
- Embalagens em geral
- Óleo lubrificante e suas embalagens
- Óleos lubrificantes usados
- Lâmpadas
- Latas de alumínio
- Medicamentos
- Pilhas
- Pneus
No papel, o sistema é robusto. Na prática, falta informação, fiscalização e acesso. Em muitas cidades, a população sequer sabe onde descartar corretamente esses materiais.
O Brasil diante do próprio espelho
Os dados de 2024 revelam um país em transição, mas ainda preso a velhos erros.
O Brasil produz muito lixo, começa a transformar resíduos orgânicos em energia, depende dos mais pobres para reciclar e ainda convive com milhares de lixões ilegais.
A mudança necessária não é apenas tecnológica. É cultural, social e política. Exige educação ambiental contínua, valorização dos catadores, investimentos públicos consistentes e coragem para enfrentar interesses econômicos que lucram com o descarte fácil.
Enquanto isso não acontece, o caminhão seguirá passando cedo. E o país continuará jogando fora não apenas resíduos — mas oportunidades de futuro.

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