A autonomia total do BC — vendida como técnica — pode significar um órgão com poder orçamentário e financeiro sem freios democráticos, impactando juros, câmbio, reservas e a própria dívida pública
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Banco do Brasil - © Marcelo Camargo/Agência Brasil |
Nos corredores frios do poder, onde o tilintar dos copos de cristal abafa o som das ruas, um projeto de emenda constitucional avança silenciosamente — a PEC 65/2023. Seu objetivo, vendido como “modernização”, é simples e devastador: transformar o Banco Central do Brasil em uma empresa pública com autonomia total, livre da dependência do Tesouro e, na prática, acima do governo eleito e dos controles democráticos.
Sob o manto da “eficiência técnica”, o país pode estar prestes a entregar a chave da sua soberania econômica a um grupo restrito de tecnocratas e banqueiros — um Estado paralelo, imune à vontade popular.
A falsa neutralidade: quando o mercado veste o terno da democracia
Os defensores da PEC, entre eles ex-presidentes do Banco Central, figuras do sistema financeiro e entidades empresariais de peso, alegam que a mudança é essencial para “preservar o Pix” e garantir “autonomia operacional”. Mas por trás do discurso tecnocrático mora o velho sonho de sempre: o mercado governando sem precisar do voto.
Eles falam em meritocracia e técnica, mas o que se esconde é o poder de definir juros, câmbio, reservas e dívida pública — e, com isso, decidir o rumo da economia nacional sem prestar contas a ninguém. É o mito da neutralidade, onde a “ciência econômica” serve de escudo para interesses corporativos bilionários.
Corporativismo disfarçado de patriotismo
Entre os que pressionam pela aprovação da PEC estão também servidores e associações internas do próprio Banco Central, ansiosos por aumentos salariais e participação nos lucros gerados pelas operações de swap, câmbio e juros.
O que se apresenta como defesa da eficiência é, na essência, um projeto de corporativismo monetário — um modelo em que o interesse da corporação se sobrepõe ao interesse nacional, e o destino do país passa a ser ditado por uma cúpula técnica, autorreferente e desconectada da realidade da maioria.
O rombo invisível: o Banco Central e a dívida que cresce nas sombras
A procuradora Élida Graziane Pinto, que estuda o tema a fundo, alerta: as decisões do Banco Central têm impacto direto sobre centenas de bilhões de reais da dívida pública brasileira — e isso ocorre sem o devido controle institucional ou transparência.
Segundo pesquisa de Flávia Félix Barbosa, orientada pelo professor Fábio Bittes Terra, os juros e as variações patrimoniais responderam por 70% da expansão das operações compromissadas entre 2002 e 2020 — o equivalente a R$ 870 bilhões.
Traduzindo: a dívida pública cresce não apenas pela política fiscal, mas sobretudo pelas decisões do Banco Central, que aumentam o custo da dívida com a manutenção artificial da taxa Selic.
O próprio vice-presidente Geraldo Alckmin resumiu a equação: “Quase metade da dívida pública brasileira é selicada. Não há nada pior para a questão fiscal do que uma Selic desnecessariamente elevada.”
Em outras palavras: enquanto o governo corta verbas de escolas e hospitais, a cada ponto percentual de juros o país perde bilhões para rentistas e bancos.
Autonomia sem responsabilidade: um poder que não presta contas
A Lei Complementar 179/2021 já deu ao Banco Central uma autonomia funcional inédita — com mandatos fixos para seus diretores e presidente, protegendo-os de interferência política. Mas o que era para vir junto — a responsabilização pelo desempenho — até hoje não foi regulamentado.
A lei determina que o BC deve perseguir quatro pontos:
- Estabilidade de preços;
- Estabilidade e eficiência do sistema financeiro;
- Suavização dos ciclos econômicos;
- Fomento ao pleno emprego.
Na prática, porém, apenas o primeiro — o controle da inflação — tem sido levado a sério. Os outros três foram relegados ao esquecimento, como se o mercado, por mágica, resolvesse tudo sozinho depois que os preços se estabilizam. Essa lógica perversa transforma o Banco Central em um guardião dos juros altos, mesmo quando isso significa desemprego, fome e recessão.
A democracia ameaçada pela tecnocracia
A PEC 65 propõe algo ainda mais profundo: dar ao Banco Central autonomia orçamentária e financeira plena, transformando-o em uma empresa estatal com poder de polícia e regulação — um ente quase soberano dentro da República.
Na prática, decisões que impactam diretamente o preço dos alimentos, o custo da dívida e o crescimento econômico seriam tomadas por um grupo sem voto, sem controle e sem responsabilidade pública. É o golpe branco da tecnocracia: um poder não eleito, que se traveste de técnica para escapar da política — e, ao fazê-lo, subtrai da sociedade o direito de decidir o próprio destino econômico.
O silêncio que grita
Nada disso está nas manchetes. O debate é intencionalmente frio, técnico, cheio de siglas e números. Mas por trás da aparente racionalidade, o que está em jogo é a alma da democracia brasileira.
Um Banco Central acima do Estado é um Banco Central acima do povo. E um país onde o dinheiro governa sozinho deixa de ser uma democracia — torna-se uma plutocracia: o governo dos poucos sobre a vida de todos.
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