“Blindagem em pleno dia, orquestrada por 2/3 da Câmara na calada da noite”: quando a Casa que devia traduzir a vontade do povo parece erguer um escudo contra a própria lei
Por Ronald Stresser — Sulpost
Nos corredores frios do Congresso, onde o som dos sapatos e o toque de celulares se misturam com discursos e sussurros, passou pelas mãos da Câmara dos Deputados — em rapidez que confundiu e causou espanto — uma proposta que já ganhou o nome de PEC da Blindagem. Em dois dias, a pauta foi votada, aprovada e enviada ao Senado. Mas a pressa não apagou a sensação generalizada de que algo profundo foi rompido: a tênue linha entre prerrogativa institucional e autoproteção que cheira a impunidade.
O gesto do Judiciário e a pergunta que fica
O episódio ganhou outro capítulo quando o ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, exigiu esclarecimentos formais: deu à Câmara dez dias para explicar como tramitaram as decisões que levaram à aprovação da PEC, em resposta a um mandado de segurança apresentado pelo deputado Kim Kataguiri. O recado do Judiciário soa como um interruptor ligado num clima de urgência — é o tempo do direito pedindo freio ao impulso político.
O que a PEC altera — em termos concretos
Na prática, o texto aprovado estabelece que deputados e senadores só poderão ser processados criminalmente se sua Casa autorizar, em votação (re)incorporada ao rito com voto secreto, a abertura de ação penal no STF — com prazo de até 90 dias para essa autorização. Mesmo prisões em flagrante por crimes inafiançáveis passariam a depender de aval da Casa em até 24 horas. E, ainda, o texto amplia foro especial, estendendo-o a presidentes de partidos. Para críticos, é mais que tecnicalidade: é um desenho institucional que coloca privilégios acima da investigação e da transparência.
Vozes que doem: a reação de quem representa e de quem sofre
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva — figura que ainda carrega o poder simbólico de falar aos campos, fábricas e praças — não mediu palavras ao classificar a manobra como algo que “não é uma coisa séria”, lembrando que as prerrogativas que importam, para ele, são as do povo: educação, trabalho, vida. A frase ecoou como um aperto no peito de quem já vive a sensação de distância entre representantes e representados.
“Nós temos que garantir prerrogativa de vida para o povo brasileiro, prerrogativa de trabalho, prerrogativa de educação.” — Luiz Inácio Lula da Silva.
Partidos no Supremo e o labirinto regimental
Além do mandado de segurança de Kataguiri, partidos como PT, PSB e PSOL ingressaram no STF pedindo a suspensão da tramitação, apontando para falhas regimentais: ausência de publicidade prévia do parecer do relator, falta de prazo regimental para apresentação de emendas e convocações das sessões sem a antecedência legal. Para quem acompanha o tema, não se trata apenas de formalismo: são princípios mínimos de transparência e debate que, se suprimidos, enfraquecem a legitimidade do próprio processo legislativo.
Do plenário ao Senado: um rito de resistência
Mesmo com a votação aprovada na Câmara, o caminho até a promulgação é tortuoso. O presidente do Senado, Davi Alcolumbre, encaminhou a proposta à Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), em um rito normal que, para muitos opositores da PEC, significa uma chance real de sepultar a proposta — especialmente porque o presidente da CCJ, Otto Alencar, declarou-se contrário e não pretende dar prioridade ao texto. No Senado, líderes de distintos partidos também já apontaram resistência. A mensagem é clara: a votação apressada na Câmara não garante acolhimento automático na Casa revisora.
Ruas acesas e corações inquietos
Enquanto Brasília discute prazo, regimento e quórum, as capitais se agitam. Movimentos sociais, centrais e coletivos lançaram convocações para manifestações contra a PEC e contra outro ponto polêmico que avançou na Câmara — a tentativa de anistia aos envolvidos nos atos de 8 de janeiro de 2023.
Para muitos na rua, é a mesma inquietação: a sensação de que partes do sistema se rearticulam para proteger a si mesmas. A indignação não é abstrata; nasce de mães, trabalhadores, estudantes que veem na política a promessa de proteção e na recente manobra um retrocesso dessa promessa.
O fio tênue entre poder e confiança
Quando uma instituição — qualquer que seja — reduz a transparência sob o argumento de “prerrogativa”, ela corre o risco de perder aquilo que mais importa nas democracias: a confiança. A aprovação da PEC, a manifestação do presidente e a cautela do STF compõem hoje um nó de tensão entre esferas do Estado e a sociedade. Mais do que um embate jurídico, é uma disputa sobre a ideia de quem somos como comunidade política.
Nas próximas semanas, o que veremos será o desenrolar desse nó: respostas formais ao STF, decisões na CCJ do Senado, protestos nas ruas e, possivelmente, novos movimentos judiciais. Cada um desses passos será um termômetro sobre o limite entre prerrogativa legítima e proteção que se transforma em obstáculo ao princípio de igualdade perante a lei.
Convocação
Neste domingo, 20 de setembro, ruas de todo o Brasil devem se encher de vozes em defesa da democracia. Convocados por políticos, entidades e artistas como Caetano Veloso, milhares de brasileiros prometem sair às passeatas contra a anistia a golpistas e a chamada “PEC da Blindagem” — apelidada pelo cantor de “PEC da bandidagem”.
A mobilização vem na esteira da condenação de Jair Bolsonaro e da pressa da Câmara em aprovar medidas que soam como retrocessos na luta por justiça e transparência. O recado que ecoa das convocações é simples e urgente: quando a democracia sangra, o povo é chamado a cuidar dela.
Sulpost — Jornalismo impresso no DNA.
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