Desespero nas colinas do Texas: Enchentes devastadoras já contabilizam mais de 70 mortos e dezenas de desaparecidos
A terra rachada pela seca não estava preparada. Quando a chuva chegou — forte, insistente, insaciável — ela não encontrou refúgio, apenas solo endurecido, incapaz de absorver o impacto. Em poucas horas, o que era um alívio esperado tornou-se tragédia: o rio Guadalupe, serpenteando o coração do Texas Hill Country, transbordou com fúria, engolindo pontes, casas, memórias — e vidas.
Até o momento, ao menos 70 pessoas foram confirmadas mortas em decorrência das enchentes que atingem o Texas desde sexta-feira (4), um número que ainda pode aumentar. Em Kerr County, epicentro do desastre, 21 crianças estão entre os mortos. E 11 meninas de um acampamento de verão — o Camp Mystic, conhecido retiro cristão nas margens do Guadalupe — continuam desaparecidas. O desespero, dizem moradores e autoridades, é palpável. A esperança, cada vez mais escassa.
“Estamos buscando corpos. Agora é isso.”
O sol tenta romper as nuvens cinzentas no céu de Kerrville, mas não consegue desfazer o clima de luto e incredulidade. Para Robert Modgling, encanador de 55 anos e voluntário nas buscas, a virada da busca por sobreviventes para o resgate de corpos foi devastadora. “A gente começou procurando vidas. Mas chegou um ponto em que só restou o silêncio. E os corpos”, disse ele, com os olhos marejados. “Eu mesmo encontrei uma menina de uns sete anos presa numa árvore. Tenho uma filha dessa idade. Nunca vou esquecer.”
Camp Mystic, um refúgio que deveria ser de risos e canções, foi duramente atingido. A força das águas invadiu os chalés de madeira, arrancando paredes e sonhos. O governador do Texas, Greg Abbott, descreveu o cenário como “devastador como nenhum outro desastre natural que já vimos”. Ele garantiu que as buscas continuarão “até o último nome ser encontrado”.
Famílias à espera: o tempo, agora, é dor
Pais se aglomeram nos centros de reunificação, com celulares nas mãos, corações nas gargantas. “Tudo o que sabemos é que minha filha estava lá, numa cabana perto do rio”, disse uma mãe, sem conseguir conter as lágrimas. “Desde então, nenhum sinal.”
A dor é multiplicada pela angústia. O alerta de enchente só chegou aos celulares horas após o rio já ter tomado estradas e residências. Louis Kocurek, morador de Center Point, lembra que os sistemas de alerta instalados na década de 1980 pareciam ter desaparecido no tempo. “O aviso no meu celular chegou às 10h07. Meu filho já tinha me ligado às 7 da manhã dizendo que era impossível sair. Quando veio o alerta oficial, já era tarde.”
Chove onde a terra já está encharcada
A previsão meteorológica para a região continua preocupante. Segundo o meteorologista Bob Fogarty, da estação do Serviço Nacional de Meteorologia para Austin e San Antonio, até 10 centímetros de chuva ainda podem cair no domingo e segunda-feira. “O solo está saturado. Qualquer nova precipitação se transforma em enxurrada. É uma roleta: depende de onde cair.”
O cenário climático é resultado de uma combinação explosiva entre umidade tropical — remanescente da tempestade Barry — e um sistema de baixa pressão. Juntas, essas massas formaram tempestades estacionárias que despejaram volumes extraordinários de água sobre uma terra já fragilizada por uma seca histórica.
Lama, dor e escombros
Por onde se anda em Kerr County, a destruição é visível. Um caiaque preso a 5 metros de altura em uma árvore tombada. Carros cobertos de lama. Um armário metálico tombado sobre um chão onde antes funcionava um centro comunitário. Roupas infantis dependuradas nas árvores como sinal de uma infância interrompida.
Em Hunt, cidade vizinha, a luta dos bombeiros é quase contra o impossível: água corrente, troncos retorcidos, destroços arrastados por quilômetros. A operação é uma mistura de bravura e tragédia. “Temos áreas inteiras completamente planificadas pela água”, relatou um dos agentes.
Silêncio oficial e perguntas sem resposta
Enquanto voluntários como Modgling revivem cenas impossíveis de apagar, cresce a indignação com o que poderia ter sido feito. Algumas posições-chave no Serviço Nacional de Meteorologia estavam vagas no momento crítico, dificultando a coordenação com autoridades locais. A ausência de um sistema de sirenes eficaz nas áreas rurais também voltou ao debate. “Como instalar sirenes em lugares tão afastados?”, questiona Linda Clanton, professora aposentada. “Seria ideal, mas é caro. E se falhar no momento certo?”
Rios que matam, lagos que dão vazão
Apesar da calamidade, há um ponto de alívio: o Canyon Lake, grande reservatório que fica a jusante do rio Guadalupe, tem capacidade para conter o excesso de água. O nível atual — 888 pés — está bem abaixo do limite de segurança de 934. “Esse lago pode segurar muito mais”, informou Gregory Waller, especialista do centro de previsão de rios da região.
Mesmo assim, o aumento abrupto no nível do lago traz riscos à qualidade da água, já que lama, sedimentos e lixo foram arrastados rio abaixo. A recomendação é que áreas públicas do entorno sejam fechadas até que a situação seja controlada.
Ferida aberta no coração do Texas
Do presidente dos EUA, Donald Trump, ao ex-presidente George W. Bush, mensagens de pesar se multiplicam. Bush, cuja esposa já trabalhou no próprio Camp Mystic, declarou: “Laura e eu estamos com os corações partidos. Os texanos estão sofrendo e nós também.”
Mas para os moradores de Kerrville, o consolo institucional ainda não é suficiente. Porque nenhuma declaração política devolve a vida a quem foi levado. Nenhuma verba federal seca as lágrimas de quem espera, desesperadamente, por notícias de uma filha que partiu sorrindo para o acampamento — e talvez nunca mais volte.
Enquanto isso, o céu permanece carregado. E o Texas, mergulhado em uma tristeza que nem o sol de julho consegue dissipar.
- Com informações do The New York Times (reportagens de Edgar Sandoval, Yan Zhuang, Campbell Robertson, Amy Graff, entre outros), Serviço Nacional de Meteorologia dos EUA, declarações do governador Greg Abbott e de moradores de Kerr County, Texas.
— Ronald Stresser é jornalista, editor do blog Sulpost, e escreve artigos e reportagens sobre clima extremo e meio ambiente.
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