quinta-feira, 3 de julho de 2025

Lula e Peña retomam diálogo sobre Itaipú na Cúpula do Mercosul

Lula e Peña se reencontram em Buenos Aires para salvar Itaipu e cicatrizar feridas abertas pela espionagem

Por Ronald Stresser| Sulpost

 
 

Era cedo em Buenos Aires, antes mesmo do sol se firmar no céu de inverno, quando dois presidentes importantes da América do Sul voltaram a se olhar nos olhos.

Um café da manhã modesto, dentro da Embaixada do Brasil, foi o cenário escolhido por Luiz Inácio Lula da Silva e Santiago Peña, presidente do Paraguai, para reabrir um capítulo que andava trancado a sete chaves: o futuro da Usina de Itaipu e, com ele, o fio de confiança entre dois países vizinhos e irmãos — ou ao menos, assim gostariam de ser chamados.

Na mesa, pães, frutas, queijos e café. Nos bastidores, uma tensão diplomática que ganhou contornos amargos desde que veio à tona, em abril, a denúncia de que a Abin — Agência Brasileira de Inteligência — teria espionado autoridades paraguaias envolvidas na negociação do novo Anexo C, cláusula central do tratado que define como a energia gerada por Itaipu será repartida e cobrada entre Brasil e Paraguai.

A revelação caiu como bomba em Assunção. O governo paraguaio suspendeu imediatamente as conversas, cobrando explicações. A crise de confiança foi tamanha que, por pouco, não se rompeu uma das maiores parcerias energéticas do continente. O gesto de Lula, ao convidar Peña para um encontro reservado em solo neutro — a capital argentina —, carrega muito mais que diplomacia. Carrega tentativa de reparação.

"Foi uma conversa franca e produtiva", disse Peña. "Queremos um acordo justo e equilibrado."

Mais que isso: o que se desenhou em Buenos Aires foi o recomeço de um diálogo interrompido por desconfiança, ruído e mágoa.

O que está em jogo em Itaipu

A represa de Itaipu, colosso de concreto encravado no Rio Paraná, completou 50 anos de tratado em 2023. Desde então, o Anexo C — que trata da partilha da energia e das regras financeiras — expirou e foi mantido por acordos provisórios. Hoje, cada país tem direito a 50% da energia gerada. Mas quando o Paraguai não consome sua parte — o que ocorre com frequência —, o excedente é vendido ao Brasil. E aí começa a disputa.

O Paraguai quer receber mais. Lutava por uma tarifa entre US$ 20,75 e US$ 22,70 por kW, enquanto o Brasil queria manter o atual patamar de US$ 19,28, ou até reduzi-lo. Em maio, um acordo temporário manteve o valor até 2026, mas com aviso prévio: se o tratado definitivo não sair, o Brasil pode rever o preço, e o Paraguai corre o risco de receber ainda menos.

Para o Paraguai, essa negociação é uma oportunidade histórica de aumentar a receita nacional. Para o Brasil, é uma equação que mexe diretamente com a conta de luz de milhões de consumidores, especialmente do Sul e Sudeste. Nos dois lados, há pressa e pressão.

Espionagem e desconfiança

A tensão explodiu quando reportagens revelaram que computadores de negociadores paraguaios haviam sido invadidos por espiões brasileiros. A operação, segundo investigações, começou no governo Bolsonaro, mas continuou sob o início do governo Lula, e só teria sido encerrada oficialmente em março de 2023. O Planalto negou envolvimento direto. Mas os documentos não convenceram Assunção.

Em um gesto simbólico, Peña suspendeu as negociações e pediu “transparência total”. A relação esfriou. O silêncio virou ruído. E Itaipu, que sempre foi símbolo de integração, virou campo minado.

Caminhos de reconciliação

Foi nesse contexto que os dois presidentes se reencontraram. Sentaram-se como líderes, mas também como homens que sabem que os laços entre países vizinhos não resistem à mentira, ao silêncio ou à omissão.

Além da tarifa, Lula e Peña discutiram temas estruturantes: a Ponte da Integração, que liga Foz do Iguaçu a Presidente Franco (e já está quase pronta do lado brasileiro), e o Corredor Bioceânico, uma rota estratégica para ligar o Atlântico ao Pacífico, passando por Brasil, Paraguai, Argentina e Chile. O comércio bilateral bateu recorde em 2024, alcançando US$ 7 bilhões — e tudo isso depende de confiança mútua.

“O Mercosul precisa estar à altura de seus povos”, disse Lula. “Não estamos falando só de energia. Estamos falando de soberania, de desenvolvimento, de respeito.”

Diplomacia à brasileira, em tempos de desconfiança

Para Lula, que assumiu neste mesmo 3 de julho a presidência rotativa do Mercosul, o reencontro com Peña é uma demonstração de que a política externa brasileira busca reconstruir pontes num continente fragmentado. Uma tarefa árdua após anos de isolamento diplomático e retórica conflituosa entre os países do bloco.

A crise com o Paraguai foi, talvez, o teste mais duro. E o café da manhã na Embaixada, embora simples, teve peso de ato político de grandeza. Mostrou que, para reconstruir, é preciso antes reconhecer a rachadura.

O Sul como protagonista

Para o Sul do Brasil, essa negociação não é uma disputa distante. Itaipu gera energia que alimenta diretamente os estados do Sul e Sudeste. O preço da tarifa, a estabilidade das relações com o Paraguai e a fluidez da integração regional impactam diretamente o bolso do consumidor e o futuro de grandes obras de infraestrutura que podem reposicionar o Brasil na logística continental.

Cada megawatt que cruza a fronteira carrega também símbolos de poder, cooperação ou desavença.

Última palavra

O encontro de Buenos Aires não encerra o capítulo de Itaipu. Mas o reabre com outra entonação. Menos ruído, mais escuta. Menos imposição, mais diplomacia.

Lula e Peña, ao compartilharem um café e suas diferenças, deram o primeiro passo para cicatrizar uma ferida aberta — e, quem sabe, para devolver à energia de Itaipu o que ela sempre teve de mais poderoso: sua capacidade de unir o que antes estava separado por abismos invisíveis.

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