A nova ameaça que bate asas pelo mundo: gripe aviária já foi detectada em 50 estados nos EUA, avança no Brasil e acende alerta global para a possibilidade real de uma nova pandemia global
Por Ronald Stresser*Na zona rural do Rio Grande do Sul, um silêncio incômodo tomou conta da granja. Onde antes se ouvia o cacarejo constante das aves, agora reina uma quietude tensa, quebrada apenas pelo som abafado das botas sanitárias sobre o cascalho e o clique das trancas nos galpões isolados. Ali, no interior do município de Marau, foi detectado o primeiro caso de gripe aviária em aves comerciais no Brasil. Um sinal preocupante de que a doença que assombra especialistas mundo afora já cruzou fronteiras — e pode estar apenas começando sua marcha silenciosa rumo a algo maior: uma nova pandemia global.
A cepa responsável pelo surto, a H5N1, já havia sido detectada em aves silvestres e de subsistência no território brasileiro. Mas o salto para a produção industrial é um marco alarmante. A granja atingida, especializada em ovos férteis para a criação de frangos, teve que sacrificar milhares de animais, enquanto equipes do Ministério da Agricultura e Pecuária se apressavam em isolar a área.
Caminhos cruzados, vigilância falha
Cientistas ao redor do mundo vêm alertando: o vírus deixou de ser uma ameaça confinada a aves. Ele já infectou mamíferos em mais de 70 espécies — de gatos domésticos a vacas leiteiras, passando por focas e até camelos no Oriente Médio. Nos Estados Unidos, o H5N1 foi identificado em todos os 50 estados e já se espalhou por mais de mil rebanhos bovinos. Há registros de pelo menos 70 infecções humanas e uma morte confirmada.
"Esse vírus não é mais exclusivamente aviário. Ele está testando suas fronteiras, e o risco de adaptação para a transmissão entre humanos é real", alerta Caitlin Rivers, epidemiologista da Universidade Johns Hopkins. Ela afirma que a vigilância falha — especialmente nos Estados Unidos — pode ter permitido que o ponto de virada já tenha sido ultrapassado sem que ninguém percebesse.
A preocupação dos especialistas se baseia em três pilares: a diversidade de espécies infectadas, o contato próximo entre animais doentes e humanos em ambientes como fazendas leiteiras, e a instabilidade de políticas públicas em saúde. Nos EUA, a chegada de um novo governo Trump agravou o cenário, com o desmonte de agências federais e o aumento da repressão a trabalhadores imigrantes — justamente os mais expostos e os menos testados.
Brasil em xeque
No Brasil, a chegada do vírus a uma granja comercial provocou reações imediatas. Países como China, União Europeia e Argentina suspenderam temporariamente as importações de carne de frango — um baque em um setor que lidera as exportações globais. Mas os danos podem ir além do econômico.
"Uma vez dentro de granjas, o vírus encontra o ambiente ideal para se multiplicar e, pior, para evoluir", explica a veterinária Karina Araldi, que acompanha surtos zoonóticos no Sul do país. "Esses núcleos industriais são como caldeirões de pressão biológica. Qualquer mutação ali pode ter efeitos imprevisíveis."
A maior inquietação é que o vírus encontre uma forma de transmissão eficiente entre humanos. Até agora, os casos são raros e isolados — mas a história das pandemias nos ensina que tudo pode mudar rapidamente.
Marcha silenciosa, resposta hesitante
"Estamos vendo saltos biológicos cada vez mais audaciosos", diz o professor Kamran Khan, da Universidade de Toronto, lembrando que o H5N1 já cruzou barreiras de espécie impressionantes. "Não é só de pato para pombo. São mamíferos, répteis, até pinguins. É um vírus inquieto, mutante."
Apesar disso, a resposta global tem sido hesitante. A vacinação de aves, por exemplo, ainda é controversa. Países como França, Índia e China vacinam seus plantéis, com resultados promissores. Mas nos EUA e em boa parte do Ocidente, ainda há resistência — por medo de impactos comerciais.
Mesmo com a recente aprovação condicional de uma vacina animal pelo Departamento de Agricultura dos EUA, a maioria das propriedades segue vulnerável. E embora governos já tenham estoques de vacinas humanas contra o H5N1, elas seriam usadas apenas em situações de alto risco, como em trabalhadores rurais diretamente expostos.
"Se a transmissão entre humanos começar de fato, teremos que correr contra o tempo", afirma Khan. "As vacinas disponíveis hoje talvez não sejam o par ideal para a cepa em circulação, mas podem dar uma imunidade parcial enquanto se desenvolve uma vacina específica. Ainda assim, isso leva tempo."
Do campo ao caos global?
Os primeiros casos apareceram há 12 anos, em 2003. De lá para cá mais de 700 pessoas já foram infectadas pelo H5N1 em ao menos 15 países. A maior parte desses casos aconteceu em regiões onde as pessoas vivem muito perto das aves — como é comum em zonas rurais da Indonésia, do Vietnã e do Egito. Esse dado é da Organização Mundial da Saúde, ligada à ONU, que acompanha de perto essas doenças que saltam do mundo animal para o humano. Só que agora o cenário mudou. O vírus saiu do seu território “conhecido” e apareceu em países como México, Índia, Camboja, Reino Unido — e nos Estados Unidos, onde o alerta subiu de tom — sinal de que o vírus está indo além de fronteiras e hábitos tradicionais, provavelmente transportado por aves migratórias.
A natureza do vírus, que "gosta de mudar e se adaptar", como define Caitlin Rivers, pode transformar sua marcha lenta em uma corrida desenfreada. A temporada de migração das aves já começou, e com ela aumenta a chance de o vírus cruzar continentes sem barreiras.
O que nos espera
Ninguém sabe ao certo se a gripe aviária será a próxima pandemia. Mas uma coisa é clara: o mundo não pode mais tratá-la como uma crise distante. O vírus já chegou às granjas brasileiras, se espalha entre mamíferos, circula nos bastidores da indústria global de alimentos e testa, dia após dia, sua capacidade de ir mais longe.
"Precisamos agir como se fosse inevitável", diz a veterinária Karina Araldi. "Porque talvez seja."
Enquanto isso, em Marau, os galpões continuam lacrados. O som das aves deu lugar ao farfalhar dos macacões brancos, ao zumbido dos drones de vigilância e à angústia contida de quem sabe: não estamos tão longe da próxima tempestade.
*com informações da FDA, OMS e BBC.
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