Angélica Chamon Layoun foi demitida no RS por copiar decisões em série e reabrir casos já julgados. Defesa diz que ela enfrentava sobrecarga e preconceito
Por Ronald Stresser | SulpostFoto: Reprodução/LinkedIn/Angélica Layoun |
“É humanamente impossível julgar quatro processos por dia com profundidade”, diz jurista, diante de uma realidade que se impôs sobre Angélica Layoun — não como exceção, mas como sintoma.
No papel, o caso parece simples: uma juíza, 39 anos, demitida após investigação apontar que ela repetia decisões judiciais em série, aplicando o mesmo texto padrão a mais de 2 mil processos.
Mas na vida real, essa história é muito mais do que um carimbo de culpa. É uma janela para dentro do sistema judiciário — onde números muitas vezes valem mais que justiça, e onde o humano, mesmo de toga, também cansa.
Angélica Chamon Layoun foi desligada do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, no último dia 3 de julho. Ela atuava na 2ª Vara Cível de Cachoeira do Sul e, antes disso, na 1ª Vara de Panambi. No período entre julho de 2022 e setembro de 2023, chegou a proferir cerca de quatro decisões por dia útil — um ritmo que, segundo especialistas, beira o insustentável.
“É uma máquina que engole o próprio operador”, declarou um jurista nosso amigo, que pediu anonimato. “Não estamos tratando de uma fraude para enriquecimento ou favorecimento pessoal, mas de uma tentativa desesperada de dar conta da demanda. E isso deveria nos alertar sobre algo maior.”
A trajetória e o colapso
Mineira de nascimento, formada em Direito pela FUMEC (Fundação Mineira de Educação e Cultura), Angélica iniciou sua vida jurídica como advogada em Belo Horizonte. Entrou como analista no TRF1 em 2014, e, em 2016, realizou um sonho que, para muitos no Direito, parece inalcançável: tornou-se juíza no Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE).
Com a transferência para o Rio Grande do Sul, em 2022, ela trocou clima, cultura, amigos e suporte familiar por uma nova missão. E foi sozinha, com uma filha pequena, autista, nos braços.
Uma mulher do Sudeste, mãe solo no Sul, ocupando uma cadeira de poder num ambiente ainda marcado por códigos antigos e pouco acolhedores.
Despachos em série: atalho ou armadilha?
A prática que levou à sua demissão foi a utilização de “despachos em lote” — um recurso permitido, ainda que controverso, no processo eletrônico, que permite aplicar uma mesma decisão a processos com teor semelhante.
Para a defesa, isso foi apenas uma tentativa de lidar com a sobrecarga. Para o TJRS, foi automatização sem critério. “Padronizar decisões sem análise individual atenta fere a essência da magistratura”, afirmou o tribunal em nota.
Além disso, foi apontado que a juíza teria reaberto indevidamente casos já arquivados. A justificativa? Muitos desses processos teriam sido encerrados apenas com despachos, sem sentença formal — o que, segundo sua defesa, representava uma “correção transparente” e não uma irregularidade.
Uma mãe, uma juíza e um sistema bruto
O advogado da juíza, Nilson de Oliveira Rodrigues, apresentou uma defesa que não se limitou à técnica jurídica. Ele denunciou, também, o peso das circunstâncias pessoais:
“O processo ignorou o que significa ser uma mulher vinda de outro estado, sozinha, com uma filha diagnosticada com TEA, tentando equilibrar a vida funcional e pessoal”, argumenta.
A crítica à penalidade foi dura: “desproporcional, juridicamente viciada e carente de prova de dolo ou má-fé”. A defesa aponta ainda que o próprio TJRS já havia orientado a possibilidade do uso do despacho em lote.
A pena foi agravada pelo fato de Angélica ainda estar em estágio probatório, o que abre brechas para demissão mesmo em casos considerados menos graves. Com isso, ela perdeu não apenas o cargo, mas também o sonho de uma vida — sem direito a recurso dentro da Corte. A revisão agora está nas mãos do CNJ (Conselho Nacional de Justiça).
Quando produtividade engole justiça
A história de Angélica escancara um dilema cada vez mais presente nos tribunais brasileiros: a produtividade virou régua de desempenho, e não raro, juízes são cobrados por metas que ignoram a densidade dos casos.
“A pressão por volume é brutal. E o processo eletrônico, que deveria facilitar, virou uma fábrica de decisões rápidas”, avalia o jurista consultado pela reportagem. “Se uma juíza não consegue parar para analisar caso a caso porque precisa cumprir metas, algo está errado — não com ela, mas com o sistema.”
Licenciada, mãe e em silêncio
Hoje, Angélica Chamon Layoun consta como licenciada no Cadastro Nacional da OAB. Em silêncio público, vive o luto da toga perdida enquanto busca, nos bastidores, uma nova chance.
A filha, de três anos, exige ainda mais dela do que qualquer processo. A maternidade, que deveria ser motivo de respeito, virou obstáculo invisível para uma carreira que ruía sob o peso de exigências desumanas.
Seu futuro está agora nas mãos do CNJ. E mais do que decidir se ela errou ou não — o que está em jogo é se o Judiciário terá coragem de se olhar no espelho.
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