A longa travessia dos jumentos: exportação para China ameaça de extinção o animal símbolo do sertão brasileiro
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No imaginário popular do sertão nordestino, a silhueta de um jumento cortando a paisagem ressequida é quase tão sagrada quanto as rezas à beira do fogão à lenha. Animal companheiro, teimoso e fiel, o jumento — Equus asinus — atravessou séculos ao lado do povo simples, puxando carroças, carregando água, cruzando trilhas onde máquinas não ousam passar. Mas essa relação ancestral, marcada por suor, poesia e religiosidade, corre risco de ser extinta em silêncio. Literalmente.
É que a demanda crescente da China por ejiao — uma gelatina medicinal feita a partir da pele dos jumentos — vem provocando uma matança sem precedentes desses animais no Brasil, em outros países da América Latina e da África. Segundo especialistas reunidos no 3º Workshop Jumentos do Brasil, em Maceió, a espécie pode desaparecer do território brasileiro até 2030, caso nada seja feito.
“A situação do Brasil e do mundo em relação ao jumento é assustadora”, resume o professor Adroaldo Zanella, do Departamento de Medicina Veterinária da USP. Segundo a Frente Nacional de Defesa dos Jumentos, o país perdeu 94% do seu rebanho de asininos entre 1996 e 2025.
Colágeno de sangue e silêncio
Tradicional na medicina chinesa, o ejiao é considerado um tônico rejuvenescedor, usado há séculos para melhorar a circulação sanguínea, aumentar a fertilidade e reforçar a imunidade. O problema é o custo por trás da suposta cura: apenas em 2021, 5,6 milhões de jumentos foram abatidos para atender ao mercado internacional. A previsão é que esse número suba para 6,8 milhões em 2027, segundo a ONG internacional The Donkey Sanctuary.
O Brasil, que sequer possui fazendas para reprodução da espécie, virou um dos principais fornecedores de pele bruta, sacrificando um dos animais mais emblemáticos de sua cultura rural em nome de um comércio que muitos consideram cruel e descontrolado.
Registros da crueldade
Uma pesquisa publicada este ano na revista científica Animals aponta um cenário preocupante: a maioria dos jumentos abatidos apresenta sinais evidentes de maus-tratos, abandono, má nutrição e sofrimento extremo. Não há regulamentação efetiva no transporte e abate desses animais, o que agrava o risco de disseminação de doenças — inclusive zoonoses, como alerta o próprio relatório da Donkey Sanctuary.
“Estamos vendo um processo de industrialização do abate, sem qualquer estrutura de produção adequada, e com absoluto desrespeito ao bem-estar animal”, diz a médica-veterinária Patrícia Tatemoto, coordenadora da campanha da organização no Brasil.
O fim de uma parceria histórica
Não se trata apenas de números. O desaparecimento dos jumentos traria impactos diretos para milhares de famílias do campo, sobretudo na agricultura familiar. Em pequenas plantações de cacau e café, onde tratores não entram, o jumento segue insubstituível. Sua doçura, inteligência e resistência o tornam também um companheiro querido, muitas vezes tratado como membro da família.
“É um animal dócil, forte e extremamente útil. Tirar ele do campo é tirar uma ferramenta de trabalho de quem já tem muito pouco”, lamenta seu José Florêncio, agricultor em Uauá, no sertão da Bahia.
O tempo de gestação longo — 12 meses — e a maturação demorada para o abate (cerca de 3 anos) tornam sua criação comercial pouco viável. A exploração atual, portanto, se baseia na retirada desordenada dos animais que vivem soltos ou abandonados, sobretudo no Nordeste, onde o jumento antes vagava livre pelas estradas.
Alternativas precisam de vontade política
Cientistas vêm testando soluções tecnológicas como a fermentação de precisão, capaz de produzir colágeno sintético sem o uso de animais. “Investir nessas inovações é essencial para proteger a espécie e promover práticas mais sustentáveis, inclusive sob a perspectiva socioeconômica”, afirma o engenheiro agrônomo Roberto Arruda, doutor em Economia Aplicada pela USP.
Alguns países africanos, como Quênia, Nigéria e Tanzânia, já restringiram ou baniram o abate de jumentos para exportação. No Brasil, dois projetos de lei tramitam com o objetivo de proibir a matança da espécie para o comércio de carne ou derivados: um na Câmara dos Deputados e outro na Assembleia Legislativa da Bahia.
Grito do sertão que ecoa no mundo
O jumento, que a tradição cristã diz ter carregado Jesus em sua entrada em Jerusalém, carrega agora o peso de um destino que não escolheu. O que está em jogo não é apenas a sobrevivência de um animal, mas a memória de um Brasil profundo, onde o jumento era símbolo de força, luta e resistência.
Salvar o jumento é, portanto, mais do que preservar uma espécie: é resgatar uma parte de nós mesmos. É dizer que a modernidade não precisa ser sinônimo de crueldade, e que há formas mais justas e humanas para vivermos e produzirmos. Que o barulho de um jumento no sertão não seja substituído pelo silêncio de sua ausência.
- Com informações da BBC Brasil, G1 Meio Ambiente, The Donkey Sanctuary, Revista Animals, USP - Revista Brasileira de Pesquisa Veterinária e Ciência Animal e Agência Brasil.
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