quinta-feira, 25 de dezembro de 2025

Onde o Natal ainda acontece: padre Júlio Lancelotti e o gesto radical de acolher quem o mundo insiste em abandonar

Entre ataques ideológicos e indiferença social, o padre que escolheu viver o Evangelho na rua mostra que acolher não é ideologia, é humanidade — e que o Natal só existe onde há gente disposta a olhar para quem foi empurrado para fora da sociedade

Com informações da Agência Brasil (reportagem de Guilherme Jeronymo)

Padre Júlio, antes de padre, ser humano — Rovena Rosa/Agência Brasil

Enquanto parte do debate público se perde em ódio, rótulos ideológicos e ataques vazios — que chegam ao absurdo de chamar de “comunista” um padre que oferece comida, escuta e dignidade —, há quem siga fazendo do Evangelho um gesto concreto. Na contramão do julgamento fácil e da indiferença social, o padre Júlio Lancelotti transforma o Natal em verbo: acolher.

Na tarde de 25 de dezembro de 2025, a Casa de Oração do Povo da Rua, na região da Luz, em São Paulo, voltou a se encher de gente, vozes, cheiros de comida quente e silêncios carregados de história. Ali, onde a cidade costuma virar o rosto, o Natal acontece sem fantasia: acontece como partilha.

Conhecido internacionalmente por sua atuação junto à população em situação de rua, padre Júlio chegou discretamente, como faz há décadas. Cumprimentou um por um, ouviu histórias, rezou, abraçou. “O espírito do Natal é acolher aqueles que ninguém acolhe, olhar para aqueles que ninguém olha”, disse, resumindo em poucas palavras aquilo que muitos discursos religiosos já esqueceram.

Um Natal que revela a ferida social do país

A mesa farta, paradoxalmente, revela uma dor coletiva. Se em muitas casas a abundância simboliza celebração, ali ela também denuncia o avanço da exclusão. Segundo dados do Observatório da População em Situação de Rua, São Paulo já ultrapassa 80 mil pessoas vivendo nas ruas — número que cresce ano após ano, empurrado pela desigualdade, pela falta de políticas públicas e pela indiferença institucional.

“A situação está cada vez mais difícil. A polarização, a desigualdade, tudo isso pesa. O número de pessoas na rua só aumenta”, lamenta o padre, sem teatralidade, apenas com a firmeza de quem vê essa realidade todos os dias.

Ainda assim, o ambiente não é de caos. Crianças são servidas primeiro, depois mulheres, e só então os homens — maioria. Não há gritos nem disputa. Há espera paciente. Há respeito. Há algo que lembra família.

Muito além do prato de comida

Antes mesmo do almoço, a casa já estava cheia. Voluntários trabalham desde cedo: lavam louça, cortam alimentos, organizam roupas, montam kits de higiene, separam brinquedos. O espaço abriga também um presépio montado pelos próprios frequentadores — símbolo silencioso de pertencimento.

A coordenadora do local, Ana Maria da Silva Alexandre, atua ali há 26 anos. Para ela, o sentido do trabalho vai muito além da assistência material.

“Não é só comer e beber. É sentar à mesa, conversar, reencontrar alguém conhecido, criar laços. O Natal é muito triste para quem passa sozinho na calçada. Aqui eles sabem que a porta está aberta”, afirma.

Ela lembra que 2025 foi um ano duro: reintegrações de posse, despejos, pessoas expulsas de ocupações e devolvidas às ruas. “A Cracolândia dizem que acabou, mas só foi empurrada para outros lugares. O descaso continua”, resume.

Histórias que não cabem em rótulos

Entre os que aguardavam o almoço estava Ronaldo (nome fictício). Após anos longe das drogas, teve uma recaída recente e voltou às ruas. Ainda assim, ajuda como pode, montando kits de higiene. “Foi um ano difícil, mas vai melhorar”, diz, com uma esperança que insiste em sobreviver.

Luna, mulher trans, e Emerson, seu companheiro, passam o primeiro Natal juntos. Vivem nas ruas da região da Luz e enfrentam recusas constantes nos abrigos — seja pela falta de vagas, seja pelo preconceito. Ela sonha trabalhar com televisão; ele, servente de pedreiro, está há mais de um mês sem usar drogas e busca uma nova oportunidade. Querem sair da rua juntos. Querem casar.

“Eu achei que ia passar o Natal sozinha, mas graças a Deus ele apareceu na minha vida”, diz Luna. Foi ela quem apresentou Emerson à Casa de Oração e ao padre Júlio. “Aqui a gente é bem tratado.”

Outro frequentador, Nilton Bitencourt, perdeu a mãe e, com ela, a casa onde morava. Acabou nas ruas, trabalhou, caiu no uso de drogas e tentou sobreviver. Hoje descarrega caminhões na região da 25 de Março e dorme em barracas. Seu desejo para o próximo ano é simples e profundamente humano: arrumar a ponte dentária que está caindo. “Ninguém merece ficar assim.”

O escândalo de amar sem julgar

Padre Júlio costuma ser atacado por setores da extrema-direita justamente por fazer aquilo que muitos discursos religiosos abandonaram: não perguntar antes de acolher, não moralizar a miséria, não transformar sofrimento em sermão. Seu trabalho incomoda porque expõe uma contradição profunda: a fé que grita nas redes muitas vezes silencia diante da fome real.

A pastoral que ele representa não “bate de frente” com quem vive na rua — vai ao encontro. Não exige conversão prévia, não impõe condição moral, não seleciona quem merece ajuda. E talvez por isso seja referência mundial.

Ao final da celebração, perguntado sobre qual mensagem deixaria naquele Natal, padre Júlio respondeu sem hesitar:

“Enquanto a mudança não vem, seja diferente. Esteja com os pobres.”

É uma frase simples. Mas, num país marcado por desigualdades estruturais, ela soa como denúncia, convite e compromisso.

Porque, enquanto a política falha e o preconceito grita, ainda há quem insista em fazer do cuidado um ato radical. E é nesses gestos — silenciosos, cotidianos, teimosamente humanos — que o Natal continua acontecendo.

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