Lei histórica garante validade civil aos casamentos de matriz africana e rompe, ainda que tardiamente, um ciclo de invisibilidade e racismo religioso
| © Tomaz Silva/Agência Brasil |
Aos poucos, o Brasil começa a encarar uma dívida antiga, profunda e ainda aberta. No Rio de Janeiro, um passo simbólico — e ao mesmo tempo concreto — acaba de ser dado: casamentos celebrados na Umbanda e no Candomblé agora podem ter validade civil. O que por séculos existiu apenas no campo do sagrado, do axé e da ancestralidade, passa a dialogar oficialmente com o Estado brasileiro.
A mudança está prevista na Lei nº 11.058/2025, de autoria do deputado estadual Átila Nunes (PSD), aprovada pela Assembleia Legislativa do Rio (Alerj) e sancionada pelo governo estadual. Com isso, o Rio se torna o primeiro estado do país a reconhecer juridicamente as uniões realizadas em terreiros — um marco histórico para religiões que sempre estiveram à margem do reconhecimento institucional.
Quando o Estado aprende a ouvir o sagrado
Na prática, a nova legislação permite que casamentos realizados em centros de Umbanda e Candomblé sejam convertidos em casamento civil, seguindo as regras do Código Civil (Lei 10.406/2002) e da Lei dos Registros Públicos (Lei 6.015/1973).
Para que a celebração religiosa produza efeitos legais, será necessária uma declaração emitida pela autoridade religiosa, contendo nome completo, CPF, documento de identidade e endereço dos noivos, além de data, local e horário da cerimônia. O documento também deve identificar o terreiro, o celebrante e trazer a assinatura de, no mínimo, duas testemunhas da comunidade. A partir daí, o processo segue para o cartório competente.
Mais do que um trâmite burocrático, esse gesto representa algo maior: o reconhecimento de que a fé de matriz africana também constrói família, laços e pertencimento.
“Sempre casamos. Sempre batizamos. Sempre enterramos.”
A cientista da religião, jornalista e sacerdotisa Claudia Alexandre resume o significado da lei com uma frase que atravessa gerações. Há mais de 20 anos, ela celebra casamentos, batismos e ritos fúnebres em seu terreiro, localizado em Paraty, no litoral sul fluminense.
“Esse reconhecimento chega tarde, mas chega. Celebrações de casamento, batismo e ritos fúnebres sempre fizeram parte da vida dos terreiros. O Estado Laico precisa reconhecer a autoridade religiosa da Umbanda e do Candomblé da mesma forma que reconhece a Igreja Católica”, afirma.
Para Claudia, o impacto da lei ultrapassa o campo jurídico. Trata-se de um avanço direto no combate à intolerância religiosa e ao racismo estrutural, que ainda moldam políticas públicas e relações sociais no Brasil.
“Em um país que naturaliza o crescimento do racismo religioso, essa lei é uma conquista. Ainda limitada ao Rio de Janeiro, é verdade, mas extremamente simbólica”, completa.
Equidade religiosa: o direito que sempre foi negado
Autor do projeto, o deputado Átila Nunes define a iniciativa como um processo de equidade histórica. Para ele, a legislação corrige uma desigualdade evidente.
“As igrejas católicas e evangélicas sempre tiveram seus casamentos reconhecidos civilmente. As religiões de matriz africana, não. A grande vitória é garantir que essas uniões também possam produzir efeitos legais”, afirma.
A lei também estabelece quem pode ser reconhecido como autoridade religiosa habilitada: babalorixás, ialorixás, pais e mães de santo, sacerdotes, sacerdotisas e lideranças tradicionais. O objetivo é respeitar os critérios internos de cada tradição, preservando a autonomia espiritual e organizacional dos terreiros.
Vetos que expõem os limites do avanço
Apesar do marco histórico, a sanção da lei veio acompanhada de vetos do governador Cláudio Castro, que revelam os obstáculos ainda presentes no reconhecimento pleno da liberdade religiosa.
Um dos vetos retirou o trecho que previa punições a cartórios que se recusassem, de forma discriminatória, a receber a documentação dos casamentos. Outro veto impediu a criação de campanhas educativas e ações de valorização das religiões afro-brasileiras.
Para Claudia Alexandre, essas decisões fazem parte de um padrão histórico.
“Ainda haverá dificuldades. Isso faz parte do racismo estrutural: reconhecer, mas limitar; aceitar, mas não proteger plenamente. É o mesmo que acontece com a Lei 10.639, que obriga o ensino da história afro-brasileira. Mais de 70% das escolas ainda ignoram essa obrigação”, critica.
Um pequeno passo, carregado de axé
O reconhecimento dos casamentos na Umbanda e no Candomblé não apaga séculos de perseguição, criminalização e preconceito. Mas representa um marco civilizatório: o Estado começa a enxergar os terreiros como espaços legítimos de fé, afeto, família e dignidade.
Entre o som dos atabaques, o cheiro do defumador e a força dos ancestrais, o amor celebrado no chão do terreiro agora pode atravessar as portas do cartório. Em um país marcado pela desigualdade religiosa, isso não é pouco. É história sendo reescrita — com respeito, memória e axé.
- Com informações da reportagem de Rafael Cardoso para a Agência Brasil.

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