Das raízes da tradição ao verde do futuro: a fazenda centenária que floresce com a cannabis em Nova York
Por trás da fumaça, há história, suor e muito amor pela terra. Conheça Torrwood Farm, o pedaço de chão que atravessou séculos até florescer no mercado da cannabis legalizada nos Estados Unidos.
Por sete gerações, a fazenda Torrwood, no interior do estado de Nova York, foi terra de gado, milho, rugas no rosto e histórias em volta da mesa. Hoje, ela também é lar de um dos cultivos de cannabis mais promissores do estado — e símbolo vivo de como a tradição pode caminhar lado a lado com a reinvenção.
Lucas Kerr, 44 anos, é o rosto desse novo capítulo. Nascido e criado entre os riachos e pedras da propriedade da família, ele ainda se lembra da infância assistindo caminhões-tanque enchendo garrafões com a água pura da nascente local — água que um dia foi o grande tesouro do lugar. Mas foi da terra que veio o novo ouro verde da fazenda.
“Eu fico imaginando o que meus antepassados pensariam disso tudo”, diz ele, com um sorriso que mistura reverência e audácia. Desde a legalização do uso recreativo da cannabis no estado, em 2021, Lucas apostou todas as fichas no futuro — e fez do cultivo da planta uma nova herança para a família.
A Torrwood Farm de hoje vende seus produtos para mais de 100 dispensários em Nova York, do Bronx a Albany. “As pessoas querem comprar local, querem saber de onde vem”, explica Lucas. E Torrwood vem de longe: fundada em 1846 por imigrantes escoceses, a fazenda já foi pousada para turistas da cidade, produtora de água mineral e hoje se desdobra entre cultivos sofisticados e um lar repleto de relíquias do passado.
Mais do que plantar, é cuidar da terra
Ao lado de Lucas está Paul Bernal, mestre cultivador vindo de Humboldt, na Califórnia — uma espécie de Meca da cannabis artesanal. Ele traz no bolso o conhecimento de práticas como a Agricultura Natural Coreana e o cuidado com o solo como um organismo vivo. “Você não está cultivando uma planta. Está cuidando da terra”, afirma ele, com a calma de quem conversa com as raízes.
E é justamente nesse equilíbrio entre natureza e técnica que o cultivo floresce. Torrwood produz ao ar livre, em estufas com luz solar estendida, e em um laboratório interno onde desenvolve genéticas exclusivas. É um trabalho diário, com jornadas que começam às três da manhã e só terminam ao pôr do sol. “Todo mundo quer plantar cannabis… até a hora de encarar o campo de verdade”, brinca Lucas.
A operação funciona sete dias por semana e produz até 9 mil cigarros e 10 mil gomas por dia. Tudo é testado rigorosamente para garantir segurança e qualidade. No início, houve erros e gargalhadas: “Era uma roleta-russa canábica”, lembra Shane Pearson, chef e testador de sabores da casa, sobre os primeiros lotes de comestíveis.
Entre antiguidades e buds
A casa principal da fazenda é quase um museu. David Kerr, pai de Lucas, é apaixonado por antiguidades e transformou o antigo lar em um espaço que parece suspenso no tempo: tapetes caucasianos com séculos de história, móveis resgatados de igrejas escocesas, lavabos vindos da Hollywood dos anos 1930. “Tem que se perguntar quem lavava o rosto ali”, diz ele, encantado.
David, hoje com 74 anos, nunca fumou maconha. “Sempre tive medo de ser pego… acho que agora já não importa mais”, brinca. Ainda assim, é ele quem olha com ternura para esse novo ciclo da fazenda, onde as conferências para budtenders (os sommeliers da cannabis) se misturam com festas de família no celeiro remontado peça por peça.
Negócio com alma
Na outra ponta, o desafio do negócio. O ano de 2023 foi duro. O mercado enfrentou a concorrência das lojas clandestinas, a lentidão das licenças e a confusão da regulamentação. Mas 2024 trouxe fôlego: mais dispensários, mais fiscalização, mais espaço para quem quer fazer certo.
Torrwood se destaca pelo foco artesanal e parcerias conscientes. Um de seus sócios é John Morrongiello, fundador da S.T.A. Exotics. Ele começou vendendo maconha aos 11 anos, passou por Rikers Island em 2018, e hoje é exemplo de como o mercado legal pode incluir quem sempre esteve à margem. “A legalização é o futuro — e eu incentivo todos do legado a fazerem essa transição”, diz ele.
Outro parceiro é a Weekenders Cannabis, que aposta em pequenos lotes de produção artesanal. Seu CEO, Kahlil Lozoraitis, compara o cultivo de sol ao suco de laranja fresco: tem alma, tem gosto de verdade.
Dois séculos de passado, olhos no futuro
No fim das contas, Torrwood é mais do que uma fazenda de maconha. É um símbolo. Um lugar onde a terra, mesmo cheia de pedras, ainda dá frutos. Onde o antigo e o novo se olham nos olhos, sem medo. Onde um jovem veterano de guerra pode voltar para casa, plantar algo novo e honrar cada geração que veio antes.
Lucas resume com simplicidade: “Estou feliz que meu avô e meu pai não venderam esse lugar. Agora podemos escrever uma nova história.” E ela já está brotando, folha por folha, na colina onde um dia só havia vacas e silêncio.
Ronald Stresser, com informações do New York Times.