"A cidade é passada pelo rio
como uma rua
é passada por um cachorro;
uma fruta
por uma espada.
O rio ora lembrava
a língua mansa de um cão
ora o ventre triste de um cão,
ora o outro rio
de aquoso pano sujo
dos olhos de um cão.
Aquele rio
era como um cão sem plumas.
Nada sabia da chuva azul,
da fonte cor-de-rosa,
da água do copo de água,
da água de cântaro,
dos peixes de água,
da brisa na água.
Sabia dos caranguejos
de lodo e ferrugem.
Sabia da lama
como de uma mucosa.
Devia saber dos povos.
Sabia seguramente
da mulher febril que habita as ostras.
Aquele rio
jamais se abre aos peixes,
ao brilho,
à inquietação de faca
que há nos peixes.
Jamais se abre em peixes."
João Cabral de Melo Neto
Fonte: poema integrante da obra 'O cão sem plumas', 1º poema de fôlego de João Cabral de Melo Neto, lançado em 1950, foi uma criação decisiva do jovem poeta, que na época vivia em Barcelona, com 30 anos. Este volume reúne também os quatro primeiros livros do poeta - 'Pedra do sono', 'Os três mal-amados', 'O engenheiro' e 'Psicologia da composição', além de seus primeiros poemas, escritos entre 1937 e 1940, mas só publicados décadas mais tarde. Juntas, essas obras nos mostram os passos iniciais do poeta, que atingiu muito cedo a maturidade artística, criando uma obra inigualável na poesia brasileira.
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