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quinta-feira, 29 de outubro de 2020

'A máquina do mundo', por Carlos Drummond de Andrade

"E como eu palmilhasse vagamente  uma estrada de Minas, pedregosa,  e no fecho da tarde um sino rouco    se misturasse ao som de meus sapatos  que era pausado e seco; e aves pairassem  no céu de chumbo, e suas formas pretas    lentamente se fossem diluindo  na escuridão maior, vinda dos montes  e de meu próprio ser desenganado,    a máquina do mundo se entreabriu  para quem de a romper já se esquivava  e só de o ter pensado se carpia.    Abriu-se majestosa e circunspecta,  sem emitir um som que fosse impuro  nem um clarão maior que o tolerável    pelas pupilas gastas na inspeção  contínua e dolorosa do deserto,  e pela mente exausta de mentar    toda uma realidade que transcende  a própria imagem sua debuxada  no rosto do mistério, nos abismos.    Abriu-se em calma pura, e convidando  quantos sentidos e intuições restavam  a quem de os ter usado os já perdera    e nem desejaria recobrá-los,  se em vão e para sempre repetimos  os mesmos sem roteiro tristes périplos,    convidando-os a todos, em coorte,  a se aplicarem sobre o pasto inédito  da natureza mítica das coisas,    assim me disse, embora voz alguma  ou sopro ou eco ou simples percussão  atestasse que alguém, sobre a montanha,    a outro alguém, noturno e miserável,  em colóquio se estava dirigindo:  "O que procuraste em ti ou fora de    teu ser restrito e nunca se mostrou,  mesmo afetando dar-se ou se rendendo,  e a cada instante mais se retraindo,    olha, repara, ausculta: essa riqueza  sobrante a toda pérola, essa ciência  sublime e formidável, mas hermética,    essa total explicação da vida,  esse nexo primeiro e singular,  que nem concebes mais, pois tão esquivo    se revelou ante a pesquisa ardente  em que te consumiste... vê, contempla,  abre teu peito para agasalhá-lo."    As mais soberbas pontes e edifícios,  o que nas oficinas se elabora,  o que pensado foi e logo atinge    distância superior ao pensamento,  os recursos da terra dominados,  e as paixões e os impulsos e os tormentos    e tudo que define o ser terrestre  ou se prolonga até nos animais  e chega às plantas para se embeber    no sono rancoroso dos minérios,  dá volta ao mundo e torna a se engolfar  na estranha ordem geométrica de tudo,    e o absurdo original e seus enigmas,  suas verdades altas mais que tantos  monumentos erguidos à verdade;    e a memória dos deuses, e o solene  sentimento de morte, que floresce  no caule da existência mais gloriosa,    tudo se apresentou nesse relance  e me chamou para seu reino augusto,  afinal submetido à vista humana.    Mas, como eu relutasse em responder  a tal apelo assim maravilhoso,  pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,    a esperança mais mínima — esse anelo  de ver desvanecida a treva espessa  que entre os raios do sol inda se filtra;    como defuntas crenças convocadas  presto e fremente não se produzissem  a de novo tingir a neutra face    que vou pelos caminhos demonstrando,  e como se outro ser, não mais aquele  habitante de mim há tantos anos,    passasse a comandar minha vontade  que, já de si volúvel, se cerrava  semelhante a essas flores reticentes    em si mesmas abertas e fechadas;  como se um dom tardio já não fora  apetecível, antes despiciendo,    baixei os olhos, incurioso, lasso,  desdenhando colher a coisa oferta  que se abria gratuita a meu engenho.    A treva mais estrita já pousara  sobre a estrada de Minas, pedregosa,  e a máquina do mundo, repelida,    se foi miudamente recompondo,  enquanto eu, avaliando o que perdera,  seguia vagaroso, de mãos pensas."

"E como eu palmilhasse vagamente

uma estrada de Minas, pedregosa,

e no fecho da tarde um sino rouco


se misturasse ao som de meus sapatos

que era pausado e seco; e aves pairassem

no céu de chumbo, e suas formas pretas


lentamente se fossem diluindo

na escuridão maior, vinda dos montes

e de meu próprio ser desenganado,


a máquina do mundo se entreabriu

para quem de a romper já se esquivava

e só de o ter pensado se carpia.


Abriu-se majestosa e circunspecta,

sem emitir um som que fosse impuro

nem um clarão maior que o tolerável


pelas pupilas gastas na inspeção

contínua e dolorosa do deserto,

e pela mente exausta de mentar


toda uma realidade que transcende

a própria imagem sua debuxada

no rosto do mistério, nos abismos.


Abriu-se em calma pura, e convidando

quantos sentidos e intuições restavam

a quem de os ter usado os já perdera


e nem desejaria recobrá-los,

se em vão e para sempre repetimos

os mesmos sem roteiro tristes périplos,


convidando-os a todos, em coorte,

a se aplicarem sobre o pasto inédito

da natureza mítica das coisas,


assim me disse, embora voz alguma

ou sopro ou eco ou simples percussão

atestasse que alguém, sobre a montanha,


a outro alguém, noturno e miserável,

em colóquio se estava dirigindo:

"O que procuraste em ti ou fora de


teu ser restrito e nunca se mostrou,

mesmo afetando dar-se ou se rendendo,

e a cada instante mais se retraindo,


olha, repara, ausculta: essa riqueza

sobrante a toda pérola, essa ciência

sublime e formidável, mas hermética,


essa total explicação da vida,

esse nexo primeiro e singular,

que nem concebes mais, pois tão esquivo


se revelou ante a pesquisa ardente

em que te consumiste... vê, contempla,

abre teu peito para agasalhá-lo."


As mais soberbas pontes e edifícios,

o que nas oficinas se elabora,

o que pensado foi e logo atinge


distância superior ao pensamento,

os recursos da terra dominados,

e as paixões e os impulsos e os tormentos


e tudo que define o ser terrestre

ou se prolonga até nos animais

e chega às plantas para se embeber


no sono rancoroso dos minérios,

dá volta ao mundo e torna a se engolfar

na estranha ordem geométrica de tudo,


e o absurdo original e seus enigmas,

suas verdades altas mais que tantos

monumentos erguidos à verdade;


e a memória dos deuses, e o solene

sentimento de morte, que floresce

no caule da existência mais gloriosa,


tudo se apresentou nesse relance

e me chamou para seu reino augusto,

afinal submetido à vista humana.


Mas, como eu relutasse em responder

a tal apelo assim maravilhoso,

pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,


a esperança mais mínima — esse anelo

de ver desvanecida a treva espessa

que entre os raios do sol inda se filtra;


como defuntas crenças convocadas

presto e fremente não se produzissem

a de novo tingir a neutra face


que vou pelos caminhos demonstrando,

e como se outro ser, não mais aquele

habitante de mim há tantos anos,


passasse a comandar minha vontade

que, já de si volúvel, se cerrava

semelhante a essas flores reticentes


em si mesmas abertas e fechadas;

como se um dom tardio já não fora

apetecível, antes despiciendo,


baixei os olhos, incurioso, lasso,

desdenhando colher a coisa oferta

que se abria gratuita a meu engenho.


A treva mais estrita já pousara

sobre a estrada de Minas, pedregosa,

e a máquina do mundo, repelida,

Claro Enigma (C.D.A.)

se foi miudamente recompondo,

enquanto eu, avaliando o que perdera,

seguia vagaroso, de mãos pensas."





Fonte: Carlos Drummond de Andrade, in 'Claro Enigma' (Companhia das Letras; 1ª edição, 2012) - Imagem: Pintura de Carlos Drummond de Andrade, inspirada no poema 'A Máquina do Mundo' - desconheço o autor da obra de arte, se alguém souber, por favor escreva nos comentários para o devido crédito. No rodapé a reprodução da assinatura do autor (C.D.A.) Google Images, com inserção de trecho do poema. Cite a fonte!

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