O verão que queimou casas e memórias: como o calor invisível matou milhares na Europa
Por Ronald Stresser — Sulpost
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Onda calor da Europa preocupa o mundo - ESA/Divulgação |
O dado que não cabe em estatística
Um amplo estudo que analisou centenas de cidades europeias concluiu que o último verão deixou um rastro de mortes em excesso — dezenas de milhares quando consideradas todas as cidades pesquisadas. Parte significativa dessas mortes — estimada em milhares — foi atribuída diretamente ao aquecimento causado por atividade humana. As estimativas e explicações técnicas estão em relatórios produzidos por instituições e veículos que acompanharam a pesquisa.
Esses números nos obrigam a fazer uma pergunta dura: quantas dessas perdas foram evitáveis? Os pesquisadores dizem que uma fração significativa — milhares de vidas — não teria ocorrido sem o calor extra que a mudança climática acrescentou às temperaturas já extremas.
Quem carregou o peso — e como o calor mata
A maior parte das vítimas eram pessoas idosas, muitas em casas sem condições de resfriamento ou em residências de baixa qualidade térmica. O calor mata de forma indireta: agrava doenças cardíacas e respiratórias, desidrata, sobrecarrega rins e coração. E, frequentemente, essas mortes não aparecem como “morte por calor” nas certidões — aparecem como falência cardíaca, ataque isquêmico, insuficiência renal — porque o calor entra pela porta dos diagnósticos e sai sem assinatura.
História de uma perda — um rosto entre muitos
"Ela não respondeu ao telefonema da manhã. No elevador, o ar estava quente como no resto do prédio. Quando abriram a porta do apartamento, encontraram as fotos dela sobre a mesa, a xícara com café frio. O ventilador fazia barulho, mas não havia vento."
Essa breve narrativa é simbólica de muitas outras. A tragédia do calor é discreta: acontece dentro de lares, em apartamentos térreos, em quartos sem ventilação. É o tipo de morte que a coletividade tende a não ver, porque não explode em imagens dramáticas — explode em ausência.
Como os números se distribuem
Países como Itália, Espanha, França, Alemanha e Reino Unido registraram parcelas significativas das mortes estudadas — com centenas a milhares de óbitos atribuíveis ao calor extra do verão. Em cidades grandes, centenas de vidas foram perdidas a mais do que seria esperado em um cenário sem aquecimento adicional. Os relatórios e matérias sobre o estudo trazem mapas e tabelas detalhadas para quem quiser aprofundar.
Por que isso poderia ter sido evitado — e o que ainda pode ser feito
O estudo não é só um inventário de perdas; é um roteiro de prevenção. Dois caminhos se destacam: reduzir as emissões que tornam os verões mais quentes (mitigação) e transformar cidades, casas e serviços de saúde para que suportem as ondas de calor (adaptação).
- Mitigação: cortes reais de emissões, transição energética, investimentos em transporte público e eficiência.
- Adaptação: centros de resfriamento, planos de assistência a idosos, telhados e pavimentos que reflitam menos calor, mais árvores e áreas verdes, campanhas de alerta e suporte porta a porta em dias extremos.
- Registros e transparência: reconhecer o calor como fator determinante em laudos e estatísticas de mortalidade para que políticas públicas sejam calibradas corretamente.
Essas medidas exigem vontade política e pactos comunitários — porque proteger a vida no calor não é só uma técnica, é um ato de cuidado coletivo.
O que ouvi quando fui ouvir
Em ruas onde o cimento domina, moradores contam que o cotidiano mudou: horários resignados — lavar roupas ao amanhecer, evitar o sol entre 11h e 16h — e o medo de uma conta de energia que esmaga a aposentadoria. Hospitais descrevem maior demanda por atendimento a insuficiências cardíacas e episódios de desidratação entre idosos. Em muitos relatos, a palavra que volta é "impreparados": prédios sem ventilação adequada, pouca sombra, falta de abrigos frescos.
Um pedido — por reconhecimento e ação
O verão da Europa nos empurra para um dever: não transformar esses mortos em estatística plausível que a rotina aceita. É preciso reconhecer as causas, registrar com clareza e construir políticas públicas que coloquem a vida no centro. Porque, como todo luto nos ensina, recordar é também transformar.
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