Na terra onde o tempo se dobra: fóssil oculto no Rio Grande do Sul pode reescrever a origem dos dinossauros
Por Ronald Stresser*
© Janaína Brand Dillmann |
Num pequeno trecho de chão batido, entre lavouras e colinas do interior gaúcho, o tempo parece ter parado. Ou, melhor dizendo, escondido. Por mais de 230 milhões de anos, um fóssil repousou em silêncio sob as rochas vermelhas do município de Santa Cruz do Sul. Catalogado, mas não compreendido, ele dormiu por décadas na coleção da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), até que um olhar mais atento — e uma nova pergunta — despertaram o que pode ser uma peça-chave no quebra-cabeça da origem dos dinossauros.
Batizado de Itaguyra oculta — “ave de pedra escondida”, em tradução livre do tupi com o latim —, o fóssil revela mais do que ossos mineralizados: ele revela uma linhagem perdida, um elo esquecido entre a Grande Morte e o nascimento dos titãs que dominariam a Terra por milhões de anos.
O achado, descrito em estudo publicado na última sexta-feira de maio na revista Scientific Reports, da Nature, vem reacender debates científicos antigos com uma boa dose de emoção humana. Afinal, como algo tão importante pôde passar tanto tempo invisível?
O silêncio de 237 milhões de anos
O cenário é o sítio Buriol, em São João do Polêsine — uma paisagem rural típica, cortada por estradas de chão e cercada por campos de soja. Foi ali que, entre os anos 1960 e 1970, pesquisadores encontraram fragmentos fósseis que, na época, não foram completamente identificados.
Hoje, a paleontóloga Janaína Brand Dillmann, uma das responsáveis pela documentação fotográfica da escavação, ainda se emociona ao revisitar o local. “É como visitar um túmulo antigo. Não o de uma pessoa, mas o de uma ideia. Um lugar onde a ciência quase deixou passar um pedaço essencial da nossa história evolutiva.”
A peça-chave da descoberta: dois ossos da cintura pélvica — um ílio e um ísquio. Fragmentos simples à primeira vista, mas reveladores quando comparados com outros fósseis do grupo dos silessauros, um parente próximo (ou, quem sabe, um ancestral direto) dos primeiros dinossauros.
Um dinossauro oculto?
Voltaire Paes Neto, paleontólogo do Museu Nacional da UFRJ e autor principal do estudo, conta que o processo de reinterpretação dos fósseis foi como montar um quebra-cabeça com peças trocadas de caixa.
“Durante muito tempo, achamos que os silessauros estavam à margem da árvore genealógica dos dinossauros. Mas os detalhes anatômicos do Itaguyra oculta sugerem que ele pode ser um ornitísquio primitivo — ou seja, um dos dois grandes ramos dos dinossauros já conhecidos desde o século XIX”, explica.
Se a hipótese for confirmada, o fóssil se torna um dos mais antigos dinossauros do mundo, anterior a muitos dos famosos saurópodes e terópodes que dominaram o planeta nos períodos seguintes.
“Ele não é um T. rex. Não tem dentes afiados nem uma aparência cinematográfica. Mas é um ponto de partida. É como encontrar a primeira sílaba de um épico perdido”, completa Voltaire.
O Brasil como berço da evolução
A descoberta reforça o protagonismo do Brasil — e, em especial, do sul do país — como uma espécie de berço geológico da Era Mesozoica. Os pampas gaúchos, marcados por suas rochas avermelhadas e formações triássicas, já haviam revelado outros fósseis importantes, como o Staurikosaurus, um dos primeiros terópodes conhecidos.
“O que temos aqui é um registro contínuo de vida antes e depois da Grande Morte”, afirma Flávio A. Pretto, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e coautor do estudo. “É um testemunho silencioso de como a vida resistiu, renasceu e se reinventou no território que hoje é o Brasil.”
A “Grande Morte” mencionada por Flávio foi o maior evento de extinção da história do planeta, ocorrido há cerca de 252 milhões de anos, no final do período Permiano. Estima-se que 95% das espécies marinhas e 70% das terrestres tenham desaparecido. O mundo levou milhões de anos para se recuperar. E foi nesse intervalo, nesse vácuo ecológico, que os primeiros dinossauros começaram a surgir — pequenos, ágeis, resilientes.
A pedra que canta
O nome Itaguyra oculta não foi escolhido por acaso. Ele é uma homenagem ao passado indígena do território e ao longo silêncio que o fóssil manteve até ser interpretado com os olhos certos.
“É uma ironia bonita: chamar de ‘ave de pedra’ um bicho que viveu muito antes das aves existirem, mas que pode ter sido seu ancestral remoto”, comenta Alexandre Kellner, diretor do Museu Nacional e também coautor do estudo. “E dizer que ele estava ‘oculto’ é reconhecer que a ciência também erra, esquece, e volta para corrigir seus próprios caminhos.”
A redescoberta do fóssil contou com a participação de pesquisadores da UFRGS, da Universidade Federal do Pampa (Unipampa) e do Museo Argentino de Ciencias Naturales. O estudo foi financiado por instituições como a Faperj e o INCT-Paleovert, demonstrando a força da ciência colaborativa sul-americana.
Futuro em construção
Ao fim da tarde, no sítio Buriol, o silêncio reina novamente. Mas é um silêncio diferente, carregado de promessas. Nas mãos da ciência, um fóssil reencontrado se transforma em nova pergunta, em hipótese, em luz sobre a escuridão do passado.
Enquanto a poeira se assenta sobre as trilhas abertas pelos paleontólogos, uma certeza se impõe: o Brasil ainda tem muito a contar sobre a pré-história da Terra — e talvez o primeiro capítulo dos dinossauros tenha mesmo começado aqui, entre pedras vermelhas e olhos atentos.
Créditos
✍️ Com informações da Agência Brasil
📸 Foto do local da escavação: Janaína Brand Dillmann ©
🔬 Pesquisa: UFRGS, UFSM, Unipampa, MN/UFRJ, Museo Argentino de Ciencias Naturales
📚 Estudo publicado em: Scientific Reports (Nature), 30 de maio de 2025
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