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quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

Cecília Meireles: 'Não: já não falo de ti'

"Não: já não falo de ti, já não sei de saudades.  Feche-se o coração como um livro, cheio de imagens,  de palavras adormecidas, em altas prateleiras,  até que o pó desfaça o pobre desespero sem força,  que um dia, pode ser, parece tão terrível.    A aranha dorme em sua teia, lá fora, entre a roseira e o muro.  Resplandecem os azulejos- e tudo quanto posso ver.  O resto é imaginado, e não coincide, e é temerário  cismar. Talvez se as pálpebras pudessem  inventar outros sonhos, não de vida...    Ah! rompem-se na noite ardentes violas,  pelo ar e pelo frio subitamente roçadas.  Por onde pascerão, nestes céus invioláveis,  nossas perguntas com suas crinas de séculos arrastando-se...  Não só de amor a noite transborda mas de terríveis  crueldades, loucuras, de homicídios mais verdadeiros.    Os homens de sangue estão nas esquinas resfolegando,  e os homens da lei sonolentos movem letras  sobre imensos papéis que eles mesmos não entendem...  Ah! que rosto amaríamos ver inclinar-se na aérea varanda?  Nem os santos podem mais nada. Talvez os anjos abstratos  da álgebra e da geometria." - Cecília Meireles

"Não: já não falo de ti, já não sei de saudades.

Feche-se o coração como um livro, cheio de imagens,

de palavras adormecidas, em altas prateleiras,

até que o pó desfaça o pobre desespero sem força,

que um dia, pode ser, parece tão terrível.


A aranha dorme em sua teia, lá fora, entre a roseira e o muro.

Resplandecem os azulejos- e tudo quanto posso ver.

O resto é imaginado, e não coincide, e é temerário

cismar. Talvez se as pálpebras pudessem

inventar outros sonhos, não de vida...


Ah! rompem-se na noite ardentes violas,

pelo ar e pelo frio subitamente roçadas.

Por onde pascerão, nestes céus invioláveis,

nossas perguntas com suas crinas de séculos arrastando-se...

Não só de amor a noite transborda mas de terríveis

crueldades, loucuras, de homicídios mais verdadeiros.


Os homens de sangue estão nas esquinas resfolegando,

e os homens da lei sonolentos movem letras

sobre imensos papéis que eles mesmos não entendem...

Ah! que rosto amaríamos ver inclinar-se na aérea varanda?

Nem os santos podem mais nada. Talvez os anjos abstratos

da álgebra e da geometria."


Cecília Meireles, in '1000 Poemas Que Marcaram Uma Época' (pg. 574)


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