Reportagem
O dente que fala: a nova peça do enigma de Stonehenge
Uma vaca, um dente e seis meses de vida registrados em isótopos: a pista mais humana sobre como as pedras azuis deixaram o País de Gales rumo a Stonehenge.
Por Ronald Stresser | Sulpost
Stonehenge, esse círculo de pedras que atravessa cinco milênios, continua a nos desafiar. A cada descoberta, abre-se uma fresta no mistério — e, curiosamente, a chave da vez não veio de uma rocha colossal, mas do dente de uma vaca.
Tudo começou há mais de um século. Em 1924, arqueólogos encontraram uma mandíbula cuidadosamente depositada junto à entrada sul do monumento, como se fosse uma oferenda sagrada. Durante décadas, esse pedaço de osso descansou entre os arquivos da arqueologia, silencioso, enquanto teorias iam e vinham sobre a origem das pedras que moldam o coração do monumento britânico.
Agora, em agosto de 2025, cientistas do British Geological Survey (BGS), da Cardiff University e da University College London conseguiram dar voz àquela mandíbula. Eles fatiaram o terceiro molar da vaca em nove lâminas minúsculas. E, sob o olhar da ciência, o esmalte revelou segredos guardados desde a Pré-História: variações de carbono, oxigênio, estrôncio e chumbo que registraram sua dieta, seus deslocamentos e até seus ciclos biológicos.
Seis meses em nove lâminas
O retrato que emergiu é quase íntimo. Os isótopos de oxigênio revelaram que o dente capturou aproximadamente seis meses de crescimento, do inverno ao verão. O carbono mostrou uma dieta que oscilava com as estações: forragem de bosque no inverno, pastagem aberta no verão. E o estrôncio apontou para algo crucial: as fontes de alimento vinham de áreas geológicas diferentes, sugerindo deslocamento sazonal do rebanho ou importação de forragem durante o frio.
A surpresa maior veio do chumbo. Picos de composição entre o fim do inverno e a primavera indicaram uma fonte mais antiga do que o restante do dente — assinatura compatível com terrenos de rochas paleozóicas, como aqueles do País de Gales, lar dos bluestones de Stonehenge. A jornada desse animal, portanto, parece começar longe dali.
Uma fêmea em jornada — possivelmente prenhe
Os pesquisadores notaram que o sinal incomum de chumbo não podia ser explicado apenas por contaminação local ou movimento. Uma hipótese ganhou força: o chumbo armazenado nos ossos teria sido remobilizado pelo estresse da gestação. Para testar, a equipe aplicou uma técnica de determinação de sexo por peptídeos na Universidade de Manchester. O resultado apontou alta probabilidade de que o animal fosse fêmea — e que estivesse prenhe ou amamentando enquanto o dente se formava.
Esse é o primeiro indício direto que liga restos de gado de Stonehenge ao País de Gales. Para além da curiosidade biográfica, o achado adiciona peso a uma ideia que vem ganhando terreno: o gado pode ter sido força de tração no transporte das pedras azuis através do território, arrastando trenós por estradas de madeira e rastros preparados pela comunidade.
Gales, Salisbury e a logística do impossível
Há uma década, a arqueologia já apontava pedreiras no País de Gales como origem dos bluestones. Estudos recentes reforçaram que essas pedras não chegaram pela ação de geleiras, mas por mãos humanas — e, possivelmente, cascos bovinos. Enquanto os megálitos de sarsen vieram de West Woods, a cerca de 32 km, pesando mais de 20 toneladas, os bluestones atravessaram mais de 200 quilômetros e, ainda assim, pesavam mais de três toneladas cada.
Para o professor Michael Parker Pearson, da UCL, os novos dados são “mais uma evidência fascinante do elo entre Stonehenge e o sudoeste do País de Gales”. É a possibilidade tentadora de que o gado tenha ajudado a arrastar as pedras — um feito coletivo que, além de engenho, sugere rituais, alianças e um senso de unificação entre povos distantes.
Por que isso importa agora
Stonehenge tem segredos de sobra. Mas o dente daquela vaca — fêmea, prenhe, vinda de paisagens antigas — transforma a pergunta “como moveram as pedras?” em uma narrativa de vidas concretas. A ciência nos lembra que não há mistério sem gente: há passos, fome e frio; há madeira rangendo sob o peso dos blocos; há mãos calejadas e animais extenuados; há, sobretudo, a capacidade humana de organizar o impossível.
Num mundo acostumado a respostas rápidas, a arqueologia oferece outra cadência: paciência, cruzamento de evidências, tecnologia a serviço da memória. E cada nova peça — ainda que pequena como uma lâmina de esmalte — reposiciona todo o quadro.
- Com informações do Journal of Archaeological Science — artigo publicado em agosto de 2025 sobre análise isotópica do terceiro molar bovino associado a Stonehenge. Comunicações e materiais do British Geological Survey (BGS), Cardiff University e University College London (UCL) relativos à pesquisa.
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