Trump reduz proibição federal sobre a canabis: medida federal não legaliza a maconha em nível nacional, mas reconhece seu valor medicinal, fortalece um mercado bilionário e reacende o debate sobre ciência, economia e políticas públicas
Há momentos na história em que a política, pressionada pela realidade, é obrigada a abandonar discursos ideológicos e encarar os fatos. A decisão do presidente Donald Trump de sancionar uma medida federal que altera o enquadramento da cannabis na legislação dos Estados Unidos é um desses momentos. Não se trata de uma legalização plena da maconha em nível federal — e isso precisa ser dito com clareza —, mas representa uma inflexão profunda na forma como o Estado norte-americano passa a lidar com a planta.
Ao determinar a reclassificação da cannabis dentro da Controlled Substances Act, a lei federal de drogas, o governo dos Estados Unidos deixa de equipará-la às substâncias consideradas sem qualquer valor terapêutico reconhecido. O gesto é simbólico, mas seus efeitos são concretos: o Estado admite oficialmente aquilo que médicos, pesquisadores, pacientes e governos estaduais já afirmam há anos — a cannabis tem uso medicinal comprovado e relevância econômica inegável.
Não é apenas uma mudança técnica. É uma mudança de mentalidade.
Uma contradição histórica começa a ser corrigida
Durante décadas, os Estados Unidos conviveram com uma contradição jurídica que beirava o absurdo. Enquanto o governo federal mantinha a cannabis formalmente proibida, estados avançavam na regulamentação do uso medicinal — e, em muitos casos, também do uso recreativo. Clínicas funcionavam, empresas geravam empregos, impostos eram recolhidos, e pacientes encontravam alívio para dores crônicas, epilepsia e outras condições.
Mesmo assim, tudo isso acontecia sob a sombra da ilegalidade federal, criando insegurança jurídica, entraves bancários e obstáculos para pesquisas científicas. A medida assinada por Trump não elimina totalmente esse conflito, mas reduz drasticamente a distância entre a lei federal e a realidade concreta vivida pela sociedade norte-americana.
Ao reclassificar a cannabis em uma categoria menos restritiva, o governo federal reconhece seu potencial médico, facilita pesquisas, reduz barreiras administrativas e oferece maior previsibilidade a um setor que já movimenta bilhões de dólares por ano.
Os estados: onde a cannabis já é política pública
Na prática, a cannabis já é realidade nos Estados Unidos. A maioria dos estados possui legislação própria permitindo o uso medicinal, com regras claras de prescrição, produção, controle sanitário e distribuição. Em dezenas deles, o uso recreativo também foi regulamentado, sempre acompanhado de sistemas de fiscalização e tributação.
Cada estado construiu seu próprio modelo, respeitando suas particularidades sociais e econômicas. O resultado é um mercado robusto, formal e altamente regulado, que gera centenas de milhares de empregos e sustenta cadeias produtivas inteiras — da agricultura à indústria farmacêutica, da logística ao varejo.
A nova diretriz federal não anula essas leis estaduais. Pelo contrário: ela dialoga com elas, fortalece o que já funciona e reduz o conflito institucional que por anos marcou a política de drogas nos EUA. A legalização plena em nível federal ainda depende do Congresso, mas o caminho está, pela primeira vez, claramente pavimentado.
Um mercado bilionário que já sustenta a economia
Gostem ou não os setores mais conservadores, a cannabis é hoje um mercado lícito global que movimenta dezenas de bilhões de dólares ao ano. Nos Estados Unidos, ela arrecada impostos, gera empregos formais, financia políticas públicas e contribui para o crescimento econômico local.
Estados que optaram pela regulamentação não colapsaram moralmente, nem socialmente. Pelo contrário: viram reduzir prisões por crimes de baixo potencial ofensivo, ampliaram arrecadação e fortaleceram políticas de saúde pública. A cannabis deixou de ser tratada como caso de polícia e passou a ser tratada como tema de saúde, ciência e economia.
A decisão federal reconhece essa realidade. Não cria o mercado — ele já existe. Apenas retira parte do peso ideológico que por décadas travou o debate.
E o Brasil, até quando ficará parado no tempo?
O paralelo com o Brasil é inevitável — e incômodo. Enquanto os Estados Unidos ajustam sua legislação à ciência e à economia real, o Brasil segue refém de um debate moralizado, fragmentado e frequentemente desconectado da vida concreta das pessoas.
Aqui, famílias ainda precisam recorrer à Justiça para garantir acesso a medicamentos à base de cannabis. Pesquisadores enfrentam entraves burocráticos. Pequenos produtores são criminalizados. O mercado existe, mas opera de forma limitada, cara e excludente, acessível apenas a quem pode pagar.
O mais paradoxal é que o Brasil reúne todas as condições para ser protagonista nesse setor: clima favorável, solo fértil, capacidade científica e uma demanda social crescente. Países que regulamentaram a cannabis medicinal e industrial colhem resultados claros — geração de empregos, arrecadação tributária, inovação e redução de custos no sistema de saúde.
A pergunta que se impõe não é mais se o Brasil vai regulamentar a cannabis, mas quando — e a que custo social, econômico e humano continuará adiando esse debate.
Mais do que cannabis, trata-se de futuro
A medida assinada por Trump não resolve todas as contradições da política de drogas nos Estados Unidos. Mas sinaliza algo essencial: a capacidade de um Estado olhar para os dados, para a ciência e para a realidade econômica — e ajustar suas leis à vida real.
O Brasil precisa decidir se continuará assistindo esse movimento de fora ou se terá coragem política para enfrentar o tema com responsabilidade, informação e humanidade. Porque, no fim das contas, não se trata apenas de cannabis. Trata-se de saúde pública, de desenvolvimento econômico, de dignidade e de futuro.

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